Recentemente fui convidado por um velho amigo para uma conversa. Sabe aquelas pessoas que vem, ficam meio por fora por um tempo, mas quando voltam, parecem que nunca foram? Essa é a vibe desse meu amigo. Fazia anos que não falava com ele, mas quando retomamos as atualizações da vida, parecia que nem tinha mudado tanta coisa assim sabe? Apesar dos detalhes emocionais e afetivos, meu amigo me chamou para um belo almoço em um self-service na Paulista com um objetivo.
Ele atualmente é programador, em linhas gerais (se eu fosse mais esperto também teria seguido essa área, mas tudo bem), e estava desenvolvendo um projeto específico dentro da área da saúde. Por questões de segredo industrial, não posso compartilhar quais os detalhes desse projeto, mas posso dizer que se trata do uso de tecnologias “wearebles” (“vestíveis”, como aqueles smart watches bem populares hoje em dia) para monitoramento em saúde. Evidentemente que me brilhou os olhos participar de um projeto desse, unindo as duas áreas que eu mais amo.
Durante a conversa, a proposta inicial era usar uma tecnologia muito avançada que temos hoje em dia para determinados diagnósticos, entretanto, a aplicabilidade do exame é praticamente inviável nos tempos atuais por inúmeras barreiras. Como contraproposta, fui fazendo a apresentação de alternativas mais realistas e próximas de alguns aparatos que já temos relato na literatura. Foi quando eu dei um exemplo de um equipamento que veio como uma luz na minha linha de raciocínio. Sabe aqueles insights que temos só quando estamos falando? Aquele clássico “caramba, nem eu sabia que eu sabia disso”? Foi exatamente o que me aconteceu. Quer saber qual foi esse insight? Então vem comigo!
Poliúria, astenia, polifagia e polidipsia. Parecem os quatro cavaleiros do apocalipse (ou apocalipso, para os moradores de Belém do Pará), mas na verdade são os nomes técnicos de sintomas identificados primeiramente por Araeteus (um discípulo de Hipócrates, considerado o pai da medicina) no séc. II EC lá na Grécia Antiga, que eram basicamente excesso de urina, fadiga acentuada, excesso de fome e excesso de sede.
Dentro os quatro sintomas mais clássicos, o que mais se destacava era o excesso de urina, que inspirou Araeteus a nomear essa enfermidade como se a urina “passasse através de um sifão” (sabe aqueles sifões de água? Mais ou menos a mesma ideia). O termo em grego para essa atividade era “diabetes” (existem divergências em quem usou primeiro o termo, mas vou considerar o Araeteus apenas a título de ensino).
Em 1769, muitos séculos depois do Araeteus, um médico escocês chamado William Cullen diferenciou a diabetes em dois tipos: a mellitus (como o próprio nome diz, “doce como mel”, essa conclusão veio quando um médico muito doido chamado Thomas Willis provou a urina de pacientes e deu esse nome a ela) e a insípidus, que não era adocicada.
No início do séc. XX, cunhou-se o termo “hormônio” para descrever substâncias produzidas por determinados tecidos e órgãos que levam “mensagens” com instruções para outro local do organismo. Nesse mesmo período, um médico importantíssimo chamado Dr. Frederick Allen, acreditava que uma restrição alimentar duríssima poderia curar o diabetes. A partir daqui, um marco fundamental na história não somente do diabetes, mas da medicina como um todo, foi a descoberta da insulina em julho de 1921 por uma equipe de pesquisadores canadenses da Universidade de Toronto. Deste ponto em diante, estava estabelecida a era insulínica, quando todas as grandes farmacêuticas do mundo estavam imersas na corrida do ouro pancreático.
Ao passo que a corrida acontecia, as tecnologias associadas a detecção de glicose foram impulsionadas fortemente. Num primeiro momento, a glicose era medida através da urina, mas com o tempo observou-se que esse método era pouco efetivo, pois para que a glicose fosse excretada pela urina, a sua quantidade no sangue já estava em níveis preocupantes (sem contar o potencial de lesão renal). No início dos anos 1910, eram necessários 20mL de sangue para uma detecção de glicose; em 1920 já passaram a precisar de apenas 2000 microlitros. Um dos exemplos de tentativas de detecção foi a criação de um reagente à base de cobre que mudava de cor conforme a concentração da glicose aumentava.
Entre os anos 50 e 60, um bioquímico chamado Leland C. Clark Jr., conhecido como “pai dos biossensores”, desenvolveu uma técnica de detecção de oxigênio no sangue, na água e em outros líquidos através de um aparato conhecido como “eletrodo de Clark”. Com essa tecnologia, ele pode desenvolver o primeiro protótipo do que seria um glicosímetro primordial, com base na mesma tecnologia para detecção do oxigênio. Desse momento em diante, o desabrochar de modelos e métodos foi gradativo, com a chegada nos anos 80 de dois modelos que se tornaram praticamente onipresentes na vida dos diabéticos e seus familiares: o Glucometer, da Bayer, e o Accu-chek, da Roche.
O princípio de funcionamento dos equipamentos são quase sempre os mesmos. Uma fita contendo algum reagente químico interage com o sangue que é oriundo das famosas “picadas” no dedo (muito difundido na população em geral como o “teste da diabetes”), que, ao entrar em contato com as moléculas de glicose da corrente sanguínea, muda de cor dentro de um espectro esperado, a depender da sua concentração. Essa mudança é lida pelo glicosímetro, que possui leitores especializados em traduzir a mudança de cor em um valor de concentração, geralmente dado em miligramas por decilitro (mg/dL).
Cabe também mencionar os super tecnológicos equipamentos de monitoramento contínuo de glicose, que são basicamente glicosímetros que podem ser aplicados sob a pele e fazem a detecção dos níveis de glicose 24h por dia, 7 dias por semana. O equipamento de referência para este texto, por exemplo, possui comunicação via smartphone, permitindo uma interface não somente com o paciente, mas também com o médico que o acompanha e toda a equipe de saúde.
Obviamente que existe uma série de cuidados a serem tomados quanto ao uso dessas tecnologias para o acompanhamento de doenças crônicas como o diabetes. O glicosímetro hoje está bem estabelecido e presente em todos os lugares porque um dia passou pelo duríssimo escrutínio científico para a verificação de segurança, efetividade, fidedignidade e todos os processos de controle de qualidade e melhoria contínua. Entretanto, não podemos deixar que estes passos nos desanimem a continuar buscando soluções tão boas e revolucionárias quanto o glicosímetro para outras doenças.
Quem sabe a resposta da próxima pergunta não esteja com você, meu bom amigo.
Fontes:
https://www.endocrino.org.br/a-historia-do-diabetes/
https://en.wikipedia.org/wiki/Leland_Clark
https://cxisto.wordpress.com/2020/07/11/diabetes-63-a-historia-do-glicosimentro/
https://drasilviasouza.med.br/a-tecnologia-e-o-diabetes-2/