Como entusiasta da promoção de saúde alimentar, sempre me afogo em conteúdos que podem explicar as tendências e apreensões de nossa cultura com a temática. Recentemente, encontrei um livro que nos submerge com uma das análises mais detalhadas e complexas sobre a relação contemporânea da alimentação, a saúde e a sociedade de riscos.
No texto de hoje, pretendo abordar a visão da promoção nutricional sob a ótica da saúde persecutória. Mas afinal, o que seria essa visão persecutória? Existem riscos aliados a esse paradigma? Pretendo retirar dúvidas assim neste texto!
A saúde persecutória é uma visão social desenvolvida pelos pesquisadores Luis David Castiel e Carlos Álvarez-Dardet Diaz [1]. Os sanitaristas espanhóis criaram esse modelo em um ensaio para assim avaliarem a efetividade de propostas de promoção à saúde que sejam individualizantes, centradas principalmente na responsabilização individual da condição saúde-doença das pessoas.
Como já tivemos a oportunidade de observar em outros textos e nos podcasts do portal, a saúde é alicerçada principalmente sobre fatores ambientais, psicológicos, higiênico-sanitários e genéticos. De maneira geral, é impossível retirarmos a saúde da dimensão coletiva, pois somos uma construção social que interage tanto com pessoas quanto com ambientes (de trabalho, artificial, ambiental e cultural). O processo saúde-doença, dessa forma, não pode ser separado das mudanças coletivas [2]. Essa é a visão hegemônica da academia e dos serviços atualmente.
Porém, a saúde persecutória traz um alerta sobre a maneira como instituições estão encarando a realidade da saúde sob a ótica neoliberal. É a visão perpetuada por serviços de saúde que minam a construção coletiva da promoção em saúde em detrimento do enfoque meritocrático. Para quem advoga a favor dessa visão, a saúde é um empreendimento individual criada por determinantes como exercícios, genética e alimentação adequada.
O processo saúde-doença, dessa maneira, possui um enfoque culpocêntrico, em que o próprio indivíduo advoga pela responsabilidade e a culpa pelos quadros fisiopatológicos em que se encontra. Para indivíduos persecutórios extremos, não adianta culpar empresa X pelo derramamento de rejeitos sólidos em um rio, mas sim culpar os moradores que se instalam perto desses empreendimentos de risco. Independe se os mesmos já estavam lá antes ou se eles não têm lugar para ir.
Da mesma maneira, a culpa por doenças crônicas como obesidade e diabetes também seriam dos indivíduos, independente do regime de segurança alimentar vigente em suas realidades. O ideário da “saúde de atleta” fica bem evidente, apesar de disfarçado sobre este discurso.
A problemática da saúde persecutória fica mais radical com a ‘genetização’ do discurso popular. Quando pessoas comuns — que tratam dados científicos de maneira empírica — conseguem ter acesso a informações mal processadas sobre proteômica, transcriptômica e nutrigenômica, observa-se a criação de discursos sobre saúde que beiram a culpabilização da genética de etnias e grupos minoritários. Assim, o terreno estará fértil ao reducionismo genético da condição de saúde, criando pressupostos que instauram o racismo e a eugenia nas discussões públicas.
A perseguição da saúde por pressupostos genéticos também afeta estratégias de promoção à alimentação. Como já sabemos, o campo alimentício é superpovoado por signos, símbolos e discursos relacionados com hábitos e cultura de povos [1]. A epidemia de problemas crônicos de nutrição pode ser interpretada sob duas perspectivas: uma sistêmica e outra individualizante [4]. Esses dois pontos de vistas ocupam polos de um continuum de discursos sobre saúde, responsabilidade e Estado, como podemos ver na figura abaixo:
Essas perspectivas, de certa maneira, originam padrões de respostas aos riscos a que as pessoas estão expostas em alimentação. O risco deliberado ocorre quando o indivíduo tem conhecimento e aceita as condições quando se alimenta de certo produto. O risco involuntário, ao contrário, origina-se de maneira totalmente aquém da realidade da vítima (sob forma de risco genético, ambiental ou produzido voluntariamente por outra pessoa). O risco pode ainda ser particular ou universal, dependendo da abrangência de pessoas expostas ao mesmo.
Imagine um queijo contaminado por fungos. Uma pessoa decidiu cortar o pedaço contaminado e assumiu o risco de comer o alimento. Ela sabia que as células fúngicas já haviam se espalhado por toda a extensão do produto, mas ignorou esse fato. Ela assumiu risco deliberado de desenvolver toxinfecção por este comportamento. Caso queira dar um pedaço a um amigo, sem informá-lo do perigo, estará impondo risco involuntário ao segundo. Mais precisamente, seria um risco voluntariamente produzido por outra pessoa.
Consolidou-se um cenário de riscos e apreensões muito complexo e noviço, repleto de insegurança e responsabilidades individuais. Muitas pessoas não conseguem lidar tão bem com tamanho arcabouço teórico. Para manter certa ilusão de controle, o discurso da saúde acabou sendo tomado pela ideologia do ‘estilo de vida e consumo’. Ou seja, nós somos e criamos constantemente quem nós somos pela maneira como consumimos alguns itens, inclusive alimentos.
No meio social, toda essa problemática é responsável por incitar novos estigmas sociais. Talvez o mais abrangente seja a patologização dos hábitos alimentares, mais conhecida também como ortorexia.
Esse transtorno é caracterizado pelo quadro obsessivo-compulsivo com grande preocupação pela alimentação saudável, tanto individual quanto de pessoas próximas. Muitas tendências alimentícias modernas, mesmo com aparência funcional, são caracterizadas por graus de ortorexia entre suas práticas.
O ensaio dos pesquisadores espanhóis informa sobre o caso de vegetarianos e de lactovegetarianos Hare Krishna com ortorexia, bem como a maneira em que os mesmos acreditavam estar acima do processo saúde-doença por terem uma alimentação mais restritiva. Assim, a preocupação geral dos praticantes é conquistar um suposto estado de bioascese, ou seja, uma ascensão para-espiritual através de práticas corporais e alimentares.
Praticantes de dietas draconianas ou entusiastas de alimentação podem se encontrar em algum estado dessa condição biopsicossocial. Entre os males, encontra-se a instauração do processo gastro-anômico nas práticas alimentares. Já escrevi sobre essa relação entre responsabilização, medicalização da alimentação e dieta fitness no passado, basta clicar neste link aqui. A saúde é uma condição muito séria, e o livro é bem enfático ao demonstrar a maneira como instituições criam discursos para tentar minar políticas e discussões sobre o tema.
Recomendo muito a leitura do ensaio, que se encontra de maneira gratuita no primeiro link das referências! O que achou desse texto? Acha que saúde é uma construção individual ou coletiva? Deixe sua crítica e comentário, caso queira. Até a próxima!