A Era do Jazz teve seu auge na década de 1920, um período de efervescência cultural que abraçou diversas partes do mundo, com destaque para a região do Harlem, em Nova Iorque. Efetivamente, o Renascimento do Harlem testemunhou a participação ativa de artistas de todo tipo, incluindo músicos e escritores, além de pintores, jornalistas e intelectuais. A elite branca da época manifestou um crescente interesse pelo jazz, abrindo espaço em bares e casas noturnas para apresentações jazzísticas. Os músicos podiam se apresentar, oferecendo entretenimento exclusivo à elite branca, mas não tinham permissão para compartilhar sua arte com seus pares.

Nesse cenário, desencadeou-se um movimento em prol da igualdade de direitos e pelo devido reconhecimento da expressão artística e intelectual da comunidade negra. O jazz representou uma fonte de inovação e vitalidade, caracterizado por suas qualidades poéticas e musicais excepcionais, e sua apreciação pela elite branca não poderia ocorrer sem o devido reconhecimento da genialidade dessa forma de produção artística.

Simultaneamente, autores negros emergiram como figuras proeminentes na literatura, tornando o Renascimento do Harlem um movimento verdadeiramente multicultural e interdisciplinar. Tanto a música quanto a literatura se revelaram meios significativos de resistência discursiva e criativa, empregando a arte como uma forma de contestação da perspectiva colonial. A poesia e a música, com um ritmo e uma cadência envolventes, são muitas vezes inspiradoras e tocantes, podendo levar uma fatia grande da sociedade a uma nova consciência e estrutura social.

A junção de literatura e música pode ser revelada em diversos exemplos, mas mais especificamente relacionados ao jazz são poucos e notáveis. Um deles é o romance Jazz, de Toni Morrison, parte de uma trilogia não linear, que inclui os livros Amada e Paraíso. O conflito entre esposa e amante, cheio de cenas violentas que trazem um outro lado da realidade do Harlem na época do Renascimento, se inspira no jazz não somente devido ao local onde se passa a história, o Harlem, mas também impacta no estilo de escrita e traz a atmosfera jazzística.

Embora eu tivesse um conceito, seu contexto, uma trama, personagens, dados, não conseguia definir a estrutura onde localizar o sentido, mais que a informação; onde o projeto chegasse o mais perto possível de sua ideia de si mesmo – a essência da chamada Era do Jazz. O momento em que a forma artística afro-americana definia, influenciava, refletia de tantas maneiras a cultura de uma nação; o desabrochar da liberdade sexual, uma explosão de poder político, econômico e artístico; sendo esmagada pelo presente. Primordial entre esses aspectos, porém, era a invenção. A improvisação, a originalidade, a transformação. Mais que versar sobre essas características, o romance procuraria se transformar nelas (MORRISON, 2009, p. 12).

Na Era do Jazz, percebeu-se que o mesmo transcendeu barreiras musicais e se tornou um reflexo significativo da sociedade norte-americana da época. O jazz não era apenas música; era uma manifestação artística que encapsulava a experiência e a identidade afro-americana, bem como as mudanças sociais e políticas da época. Um dos aspectos primordiais da Era do Jazz era a invenção: improvisação, originalidade e capacidade de transformação inerentes ao jazz. Essas características cabem tanto ao gênero musical quanto ao romance de Morrison. Os músicos de jazz criam novas melodias e interpretações no momento, e a escrita morrisoniana faz algo semelhante, já que é não-linear, fragmentada, e original. O romance Jazz é tão inovador e fluído quanto uma canção de jazz. Mais que apenas um tema na obra, o jazz é também uma força motriz que molda a própria natureza do romance.

O desafio era expor e enterrar o artifício e levar a prática além das regras. Eu não queria simplesmente um fundo musical ou referências decorativas a ele. Queria que a obra fosse uma manifestação do intelecto, da sensualidade, da anarquia da música; sua história, sua abrangência e sua modernidade (MORRISON, 2009, p. 12-13).

A manifestação do intelecto do jazz, junto a sua anarquia e sua modernidade, inspiraram Morrison e fizeram surgir sua obra-prima. Porém, o encontro da literatura com a música vai muito mais além: tem raízes profundas e ramificações múltiplas.

A disseminação da cultura africana nas Américas se deu devido ao tráfico de escravos, e no pós-guerra Civil, com a abolição e algumas décadas depois, com o Renascimento do Harlem, essa cultura encontrou um espaço para que a música e a literatura se aproximassem. Essas formas artísticas se influenciaram mutuamente e colaboraram para contar histórias e transmitir mensagens sobre a experiência afro-americana. Os versos simples, sonoros e musicais de Langston Hughes, notório poeta negro do Renascimento do Harlem, simbolizam o encontro entre poesia e jazz, que se faz aqui crucial na promoção da sua cultura.

Ricardo Aleixo coloca que a jazz poetry de Hughes é como uma “estupenda música verbal”. A musicalidade dos poemas de Hughes é realmente marcante, e Aleixo aponta para a relevância de um “estudo da possível coextensividade entre as linguagens artísticas, especialmente no que tange ao estabelecimento de sutis zonas de passagem da palavra escrita para o âmbito vocal” (ALEIXO IN HUGHES, 2022, p. 10).

É possível encontrar marcas de oralidade e principalmente marcas de canto, como no poema Jazzonia. Segue trecho (HUGHES, 2022, p 110):

Oh, silver tree!

Oh, shining rivers of the soul!

In a Harlem cabaret

Six long-headed jazzers play.

A dancing girl whose eyes are bold

Lifts high a dress of silken gold.

Oh, singing tree!

Oh, shining rivers of the soul![1]

A repetição de “oh” nos remete ao canto de uma típica canção de blues. A repetição dos versos iniciais e finais relembra os refrões musicais. Além disso, Hughes traz todo o cenário artístico do Harlem para este poema, mostrando a tradicional formação de banda de jazz (seis jazzeiros tocam), o cabaré, os elementos da natureza, a dançarina.

Aleixo ainda afirma que Hughes “aciona um duplo movimento criativo: seu texto exibe as marcas da vocalidade que o engendrou; sua voz, mesmo quando parece cantar, logo volta a se aproximar, por uns breves instantes, das inflexões da fala cotidiana” (ALEIXO IN HUGHES, p. 10).

Hughes traz a beleza e a dor das sorrow songs para sua escrita. Ele discorre sobre sua ancestralidade e, mesmo dentro de narrativas autobiográficas, conta a história de um povo inteiro. Ao falar sobre si próprio, sua experiência humana, suas dores e belezas, ele representa todo o povo negro norte-americano, denunciando as dores de seu passado e abrindo caminhos para as alegrias futuras. Hughes é ao mesmo tempo honesto e otimista. Esse talvez seja um dos motivos pelos quais ele é tão conectado à música. A música permite autoconhecimento, permite que se busque sentimentos profundos internamente, e ao mesmo tempo traz esperança, renovação.

De acordo com Yusef Komunyakaa, poeta musical, a música traz os sons da vida:

Well, I think of the music as a point of departure, the moment of awareness. And perhaps music is also the sounds of life. If one thinks about laughter, how it can shift and drift into cries? Cries of pain, of pleasure. So, I’m thinking about music played on instruments as well as the music of life (Komunyakaa, 2005, p. 521).[2]

Komunyakaa enxerga a música em todo tipo de sonoridade, como uma coisa única, um bloco: a risada, o grito, o canto, o poema. Hughes faz esse movimento: ele canta a vida como ela é, canta a história de seu povo, exalta sua beleza e intelectualidade, ele canta a arte do Harlem, e coloca o leitor dentro do Cotton Club, o mais famoso clube de jazz do Harlem das décadas de 20 /30.

A comunhão entre música e literatura, na sua forma mais bela, nos aponta para o potencial transformador da arte. O jazz, o dos acordes e o dos poemas, nos inspira para desenvolver um outro olhar, uma outra forma de sentir e experienciar o mundo, com mais igualdade, com a beleza das palavras e dos sons.

 

[1] Tradução (HUGHES, 2022, p 111): Oh árvore prateada!

Oh rios brilhos da alma!

Num cabaré do Harlem

Seis jazzeiros tocam.

Uma dançarina de olhar corajoso

Ergue seu vestido em seda e ouro.

Oh, árvore cantante!

Oh, rios brilhos da alma!

[2]     Tradução nossa: Bom, penso na música como um ponto de partida, o momento de tomada de consciência. E talvez a música também seja como os sons da vida. Se alguém pensa em gargalhar, como isso pode mudar e virar um choro? Choro de dor, de prazer. Então, estou pensando sobre a música tocada com instrumentos também como a música da vida.

 

Imagem de capa: https://www.pexels.com/pt-br/foto/homem-tocando-saxofone-1358816/