No scicast sobre violência comentaram rapidamente sobre fatores ambientais/sociais e biológicos que podem influenciar no quanto as pessoas são agressivas, na violência como um todo, e nos reflexos disso, sendo um deles a criminalidade (ainda que nem todo crime implique violência física). Me pareceu que partiram do princípio de que esses fatores ambientais/sociais e biológicos poderiam ser muito bem separados, existindo uma violência que seria fruto da agressividade proveniente de fatores biológicos, mais natural, e outra agressividade causada por fatores ambientais, algo mais conjuntural, mais cultural. Reconheço uma possível vantagem didática nessa separação, mas acredito que fora de uma ótica meramente instrumental, abordagens que integram biologia e cultura sem apelar para dicotomias tendem a ser mais robustas. Além disso, esse par de opostos reforça a dicotomia nature x nurture, o que há bastante tempo vem parecendo insuficiente e inacurado para explicar não só o comportamento humano, mas aspectos mais nus e crus da biologia — a própria capacidade de digerir lactose na idade adulta não existiria sem um entrelaçamento entre práticas culturais e genética. É essa abordagem que considero preciosa para abordar o problema da violência e da criminalidade.
Antes de prosseguir sobre nosso tema principal, darei breves exemplos dessa relação indissociável entre ambiente e cultura. A menarca, isto é, a primeira menstruação, pode ser pensada num primeiro momento como um fenômeno bem biológico. Mulheres menstruam, homens não, e isso é um fato biológico ligado à capacidade do corpo feminino de engravidar. A primeira menstruação ocorre junto com o início da puberdade. Apesar de não ficar tão explícito no cotidiano aos nossos olhos, o ambiente pode interferir nisso. Meninas criadas em ambientes hostis (e.g. violência, alimentação precária, baixa expectativa de vida) têm sua puberdade adiantada e menstruam mais cedo.
Algo análogo acontece com os homens também. Alguns estudos comparam a influência da percepção subjetiva da expectativa de vida — uma importante pista da ecologia onde as pessoas vivem — sobre suas características físicas. Aparentemente, homens que percebem sua expectativa de vida como mais baixa tendem a ter maior índice de massa corporal, bíceps maiores, traços faciais mais masculinizados e também tendem a entrar mais cedo na puberdade.
Depois de citar rapidamente alguns exemplos da relação ambiente e biologia, me permito explicar como diabos isso tem a ver com agressividade, violência e criminalidade, fenômenos certamente mais complexos do que puberdade e aparência física. O ponto central do meu argumento é que essas relações também explicam consistentemente por que umas pessoas são mais agressivas que outras, e por que algumas pessoas vão para a vida do crime e outras, não.
Por exemplo, quando homens e mulheres percebem sua expectativa de vida como baixa — o que geralmente acontece em contextos de adversidade — ambos tendem a ficar mais agressivos (física e verbalmente). Nesse estudo, a expectativa de vida foi manipulada através de uma história. Antes de preencher os questionários, os participantes liam um parágrafo dizendo para imaginarem que tinham ido ao médico realizar alguns exames e que o resultado tinha mostrado que eles estavam com uma grave doença e que restava-lhes pouco tempo de vida. Eram três grupos de participantes, em que cada grupo lia uma história dizendo que eles teriam um tempo vida diferente, mais curto ou mais longo. Quanto mais curto o tempo de vida, maior a agressividade. Pessoas agressivas podem estar a um passo da violência de fato. Um estudo mostrou que diante da mesma manipulação experimental da expectativa de vida, homens e mulheres se mostraram mais dispostos a práticas de coerção sexual.
Dados como esses mostram que, de fato, variáveis ambientais muito básicas estão associadas a mudanças biológicas mais explícitas e a variações de comportamento. Mas associações não são explicações. O que exatamente faz pessoas criadas em ambientes hostis serem mais agressivas? O que o ambiente muda nelas?
De alguma forma, ambientes mais hostis fazem as pessoas tenderem a ter menos autocontrole, e autocontrole insuficiente é basicamente um dos principais fatores que fazem pessoas serem mais agressivas, violentas e predispostas ao crime (isso é uma tendência estatística, de forma alguma significa que todos os indivíduos nessas condições ambientais vão ter essas características; relações estatísticas não são deterministas, são probabilísticas). Por exemplo, um amplo estudo longitudinal com amostra representativa da população masculina americana mostrou que quanto menor o autocontrole dos homens, maiores eram as chances deles terem se envolvidos em crimes, de terem sido abordados pela polícia e mais cedo o primeiro contato com a polícia ao longo da vida. Grande parte dessas diferenças de autocontrole se devem a diferenças individuais mesmo, ou seja, descontando qualquer efeito ambiental, algumas pessoas têm mais autocontrole do que outras por default. Mas ainda assim, o papel do ambiente é importantíssimo.
Tome como exemplo o papel dos pais. Pais são decisivos porque as restrições que impõem ao comportamento tipicamente mais impulsivo das crianças fariam com que elas aprendessem a desenvolver autocontrole. Sem isso, elas se tornariam adultos com pouca capacidade de se engajar em tarefas que exigem capacidade elevada de adiar recompensas, como o próprio processo educacional que é longo e cujos frutos só são colhidos décadas mais tarde. Pessoas com menor autocontrole/mais impulsivas também tendem a fazer sexo desprotegido, o que garante gravidez precoce. Pais jovens demais e marinheiros de primeira viagem vão ter mais dificuldade de incutir nos filhos uma educação que eles mesmos não tiveram, o que tende a gerar filhos que no futuro vão ter as mesmas dificuldades com autocontrole/impulsividade que seus genitores. Ou seja, é o ciclo sem fim da música do Rei Leão: pais impulsivos criam todas as condições para que seus filhos também sejam impulsivos. E esse ciclo tende a ser realizado especialmente em lugares caracterizados por baixa expectativa de vida, falta de recursos e desigualdade social (alô, Brasil?).
O fator desigualdade tem tudo a ver com algo levantado também nesse scicast sobre violência: a violência conjuntural. Países desiguais como o Brasil tendem a produzir uma população que funciona sob lógicas mais imediatistas. Se muitas pessoas estão tendo que vender o almoço para comprar a janta, como elas vão conseguir prosseguir em seus estudos por tempo suficiente para arranjar um emprego que pague mais? Muitas vezes a saída é aprender a assinar o nome e ir para o mercado de trabalho mesmo. Outra consequência dessa lógica imediatista produzida pela desigualdade é o crime. Países desiguais têm mais crimes violentos.
No início do texto mencionei que ofereceria um panorama mostrando que na verdade é pouco útil e até enganoso tratar do presente assunto como um problema circunscrito na pseudo dicotomia nature x nurture. Até agora forneci vários exemplos sobre como comportamento e aspectos biológicos parecem ser indissociáveis do ambiente, especialmente em relação a sinais contextuais básicos. Mas, em termos mais teóricos, o que estaria por trás dessa interação? Por que o organismo reage e desenvolve segundo padrões de variação contextual?
Essa é a hora de apresentar a teoria das estratégias de história de vida, ainda que sucintamente. Essa teoria surgiu primeiro na biologia evolutiva para dar conta de certas diferenças entre espécies. Por exemplo, elefantes possuem uma longa expectativa de vida, uma infância relativamente prolongada, alto investimento parental e geram poucos descendentes ao longo da vida. Roedores, por outro lado, entram em fase reprodutiva relativamente rápido, se reproduzem muito, investem menos na prole e vivem bem menos que elefantes.
Há um trade-off claro aqui: quanto mais uma espécie gasta recursos para se reproduzir, menos recursos sobram para investir em longevidade. A literatura chama isso de trade-off entre esforço reprodutivo e esforço somático. A ideia é que algumas espécies possuem mais sucesso reprodutivo maximizando suas chances de reprodução, chegando mais cedo na puberdade e gerando o máximo possível de descendentes ao longo de sua curta vida. Outras, alcançam sucesso reprodutivo investindo mais no próprio desenvolvimento, o que vai possibilitar reunir recursos por um tempo até chegar na idade ideal para se reproduzir e investir bastante nos seus poucos filhos. As espécies com maior esforço reprodutivo seguem estratégia de história de vida rápida, enquanto as que investem mais no próprio desenvolvimento têm estratégia de história de vida lenta.
Ao longo dos anos começou a ser proposto que essa variação existiria não só entre espécies, mas também entre indivíduos de uma mesma espécie. Por exemplo, a espécie humana segue estratégia de história de vida lenta, mas alguns humanos são mais lentos e outros, mais rápidos. Quem regula qual estratégia seguir é o ambiente. Quanto mais hostil o contexto, maior tendência a seguir história de vida rápida; quanto mais estável o contexto, maior tendência a seguir história de vida lenta. Isso porque as pessoas vivem menos em ambientes mais arriscados, diante de pistas que indiquem menor expectativa de vida, o organismo dá conta de se adaptar para ter sucesso reprodutivo o mais rápido possível. Por isso, quem segue estratégia de história de vida rápida tende a ter a puberdade adiantada e a ter filhos cedo.
Aqueles que seguem estratégia lenta tendem ao cenário oposto. Como o ambiente é mais estável, oferece mais recursos e permite maior expectativa de vida, há tempo suficiente para acumular recursos e ter filhos depois.
Agressividade, violência e criminalidade seriam resultados típicos de populações que seguem estratégia de história de vida rápida. Se os organismos, biologicamente, são máquinas preparadas pela natureza para maximizarem seu sucesso reprodutivo, então é esperado que em cada tipo de ambiente diferentes estratégias sejam melhores para isso. Assim, o que gera sucesso reprodutivo num país mais igualitário e estável, pode não gerar num país com mais desigualdade e instabilidade de recursos. Agressividade, violência e criminalidade viram características típicas de ambientes hostis porque nesses ambientes simplesmente é biologicamente mais adaptativo seguir qualquer estratégia que seja capaz de maximizar o sucesso reprodutivo no menor tempo possível. Claro, esse não é o objetivo das pessoas, mas é o resultado dos trade-offs biossociais que acontecem, e isso independe da vontade. As pessoas vão dar outros motivos para fazer o que fazem, frequentemente, motivos mais ligados às suas realidades imediatas. Sendo assim, formular o problema da violência remetendo-o à dicotomia nature x nurture pode não ser tão eficiente quanto elaborar a questão levando em conta como todas as esferas de análise interagem de modo a criar o comportamento observado.