Essa resenha é uma parceria do Portal Deviante com a Cia da Letras, que disponibiliza livros do seu catálogo para os nossos redatores escreverem as resenhas. Livro de hoje: “O Povo Contra a Democracia”.

O Povo Contra a Democracia, escrito pelo cientista político alemão Yascha Mounk, é um dos livros lançados recentemente e traduzidos para o português sobre a onda populista que está inundando o mundo. Mounk oferece um panorama conciso e bem escrito (com dados, o que é muito bom) de causas desse fenômeno.

Mounk entende que as causas do declínio da confiança na democracia liberal e emergência do populismo são explicadas pela crise de representatividade e pela crise econômica, dentre outros motivos que acabam emergindo desses dois, como o identitarismo. O livro não fala disto, mas vários dos problemas que atingem a democracia liberal hoje poderiam ter seus embriões vistos já na democracia lá em Atenas. É praticamente unânime de que viver numa democracia é melhor do que viver numa ditadura, o que a propaganda já mostra desde os EUA na Segunda Guerra usando o Capitão América. Mas, pensando na Atenas democrática dos tempos de Sócrates, é possível ter um vislumbre interessante das suas contradições e dificuldades.

A propaganda e a realidade da democracia

A famosa condenação de Sócrates, pintada em 1787, quase 10 anos depois da Revolução Americana, e só dois anos antes da Revolução Francesa

O populismo talvez seja um resultado inevitável das mudanças pelas quais o mundo passou desde que os fios da democracia começaram a ser tecidos lá em Atenas. Existem mais pessoas, existe maior heterogeneidade no “povo”, os direitos a opinião e voto foram expandidos, a tecnologia ampliou a voz de grupos obscuros. Por outro lado, a democracia sempre foi ambígua. Já em Atenas era assim. Não se esqueça que a democracia ateniense condenou um homem famoso à morte por expor suas ideias.

Enfim, a democracia não é simples. É andar numa corda bamba com o risco onipresente da queda no abismo dos interesses individualistas, com o risco de nunca estar representando esse tal povo genuinamente. Essa figura problemática é bem diferente da que a propaganda mostra.

A figura do Capitão América e de Sócrates marcam de alguma forma a propaganda da democracia. O soldado virtuoso Steve Rogers, mais tarde Capitão América, personifica os ideais da democracia liberal cultivados desde que os pais fundadores andavam sobre as terras do Novo Mundo. Sócrates, um ateniense que viveu há mais de 2400 anos, viveu na intelectualmente fértil democracia ateniense.

Mas, ao contrário do Capitão, Sócrates não era muito fã da democracia, o que não escondia de ninguém. E o sistema acabou fazendo-o pagar por isso. Sócrates foi condenado não só por tripudiar da democracia ateniense, mas pelo comportamento de seus discípulos, que, segundo o jornalista  I. F. Stone em O Julgamento de Sócrates, andavam pelas ruas como os belicosos e “militarescos” espartanos, com trajes sumários, esfarrapados e portando pedaços de pau. Esse pode ter sido o primeiro caso famoso de rompimento de valores fundamentais da democracia, ainda que alguns possam argumentar que aniquilar focos de ameaça seja uma necessidade justamente para a preservação das liberdades democráticas.

Sócrates se considerava uma mutuca, aquelas mosquinhas que incomodam os cavalos, mas incomodar o governo democrático de Atenas foi pior do que simplesmente levar um coice de cavalo. Sócrates foi condenado à morte por corromper a juventude ateniense. Sócrates morreu por falar abertamente suas ideias e por questionar uma democracia. Confuso, não? Mas existem problemas nas melhores famílias. De qualquer forma, é melhor viver sob as liberdades e as contradições da democracia do que sob uma ditadura fascista ou comunista.

Capitão América representa esse pensamento. Ninguém negaria os benefícios de se viver num lugar onde o povo governa por meio de seus representantes eleitos, onde existe liberdade de expressão e onde qualquer indivíduo pode trabalhar duro para ascender socialmente.

Na verdade, para o grosso do povo das democracias liberais vivendo na década de 50/60, essa propaganda não estava tão longe da realidade, não. O crescimento econômico nos EUA dobrava a cada 15 anos. Na prática, isso significava que os filhos se tornavam mais ricos que seus pais. A promessa de trabalhar duro para ter uma vida confortável era verdadeira. Mounk cita pesquisas que mostram que as pessoas que nasceram em torno dessa época são muito mais favoráveis à democracia liberal. Mas desde a década de 90 o sonho americano começou a ruir. A estagnação econômica leva ao desemprego, leva a menores salários, que leva à quebra do padrão dos filhos se tornando mais ricos que seus pais. Essas mesmas pesquisas mostram que os mais jovens reconhecem muito menos os benefícios de se viver numa democracia liberal, e trocariam mais facilmente essa forma de governo por um governo militar.

O The Atlantic publicou um artigo com depoimentos que traduzem bem essa imagem (também retirada de lá)

Segundo Mounk, isso acontece porque na verdade as pessoas estão inclinadas a aprovar governos que satisfazem seu principal interesse: bolsos cheios de dinheiro. Quando as pessoas começam a passar dificuldades elas jogam a culpa no governo, no sistema, em outras pessoas. E aí candidatos que propõem soluções fáceis ganham a cena.

Esses candidatos soam como salvadores da pátria dispostos a tirar as dificuldades do caminho para consertar o sistema. Eles estão aqui para mudar tudo isso aí. Esse vocabulário impreciso mas assertivo seduz, apesar de nem esses candidatos nem seus eleitores saberem precisamente do que ele está falando.

É aí que nasce outro ingrediente do populismo, o identitarismo. Falar para todo o povo sempre foi difícil porque na verdade não existe um povo uniforme, com os mesmos desejos e expectativas. São vários grupos diferentes que agora possuem voz por causa da internet e das redes sociais. E a política responde a isso. Os políticos elegem grupos de sua estima e falam apenas para eles. Nesse discurso, culpar outros grupos pelo desemprego é uma tática bastante utilizada. Por exemplo, é isso que acontece quando um presidente diz que a culpa pelo desemprego é dos imigrantes, ou que o seu objetivo no governo vai ser criar cotas. O pano de fundo dos argumentos sempre envolve jogar um grupo contra outro.

E isso não tem muito a ver com esquerda ou direita. Por exemplo, a direita americana vai falar para brancos, para cidadãos medianos, desempregados e anti-imigração. A esquerda vai falar com grupos de minorias sociais baseadas em gênero, orientação sexual, cor da pele e jovens universitários. A matemática é clara: a direita acaba ganhando as eleições porque atinge o grupo quantitativamente maior de pessoas.

Mounk menciona que há algumas décadas, se um cidadão aleatório na rua fosse questionado sobre quem ele era, diria que é operário, engenheiro ou americano ou algo do tipo. Hoje em dia seria mais fácil a pessoa responder algo sobre sua cor e sua orientação sexual. Talvez alguns até respondessem “sou branco e não gosto desse bando de imigrantes entrando no meu país”. Esse é um exemplo bastante amplo de tribalismo: a disposição de se aproximar e cooperar com sua panelinha, e de hostilizar quem está fora dela.

O identitarismo é ruim para a democracia porque elimina o espírito cívico. As pessoas não se identificam mais como cidadãs, como pessoas diversas unidas pelo seu papel cívico. Elas agora se vêem mais como membros de uma ou mais categorias (sexo, gênero, orientação sexual, cor de pele). O reflexo disso é que os políticos começam a falar o que essas pessoas querem ouvir. Se elas não se identificam mais como cidadãs, os políticos escolhem seus próprios grupos de interesse e falam para eles. Enquanto a guerra cultural está a pleno vapor, o desemprego aumenta. Isso significa que o político que propõe soluções fáceis para esses problemas mais práticos é o que vai ganhar a eleição — foi o que aconteceu recentemente nos EUA: enquanto a esquerda tentava agradar pautas identitárias de minorias sociais, a direita tentava agradar o cidadão médio, que é maioria da população. Nisso Mar Lilla, autor de O Progressista de Ontem e o do Amanhã, concordaria com Mounk.

Uma República dos Filósofos Populista

A otimista Era do Capitão América está dando lugar a uma Era Sócrates. Elas pensam que a democracia não é tão boa assim. É um sistema corrupto que além de não representar os cidadãos de verdade, ainda faz eles passarem por recessões econômicas. “Isso não é justo, então vou votar naquele cara ali que promete resolver meus problemas moralizando o congresso e prometendo livrar meu país dos imigrantes que estão roubando meu emprego”. Isso é psicologia social pura: as pessoas tendem a ficar mais conservadoras, mais competitivas, mais agressivas, quando os recursos são escassos. No lugar de defender um sistema que coloca no poder um monte de burocratas corruptos, é melhor defender aquele cara que fala com a sabedoria do homem comum, que promete acabar com isso tudo que está aí.

Talvez essa seja a República dos Filósofos real. O rei filósofo defendido por Platão, e possivelmente por Sócrates, poderia desembocar exatamente numa forma de populismo. O rei filósofo parecia sábio, mas segundo os parâmetros da massa, não dos filósofos. Ele teria a sabedoria popular, não a sabedoria dos filósofos — e parece que também não a mesma sabedoria popular do homem comum contemporâneo de Benjamin Franklin. E mesmo que homens verdadeiramente sábios concentrassem poder para governar, nada garante que o poder não nublaria sua sabedoria transformando-o num Smeagol obcecado pelo poder do anel. No final das contas, a democracia é o pior sistema, com exceção de todos os outros, inclusive da República dos Filósofos de Platão.