Vivemos um momento muito importante na nossa conjuntura social. Estamos produzindo muitos alimentos, mas a maior parte dos mesmos é perdida pelos mais variados motivos. Em um futuro próximo, iremos precisar de ainda mais comida do que temos disponível atualmente. A nossa eficiência alimentar não consegue acompanhar nossas demandas como espécie.

Todas as tecnologias e técnicas atuais aumentam a quantidade de alimentos produzidos, mas não são capazes de aumentar nossa eficiência alimentar (porcentagem de alimentos produzidos dividido pelo total produzido). Caso o problema persista, é possível que cheguemos a um extremo choque alimentar. Este quadro refletirá a insustentabilidade da sociedade humana.

Porém, ainda há possibilidade de revertermos este estigma. As técnicas de conservação aumentam o tempo de prateleira de alimentos, garantindo que possam ser usados e estocados por anos. Esta prática aumenta a eficiência alimentar por diminuir drasticamente a quantidade de alimentos perdidos.

Algumas dessas técnicas têm ganhado destaque, muito por causa de seu potencial tecnológico; ou até mesmo por causa das polêmicas sobre seus efeitos na saúde. A técnica que estudaremos passa por estes dois pontos.

No texto de hoje, pretendo mostrar a importância da conservação de alimentos por meio da irradiação. Iremos entender se, afinal, os produtos irradiados podem ser consumidos em segurança. Não existe realmente nenhum risco à saúde? Vamos ver!

A irradiação de alimentos é um técnica empregada para o controle, desinfestação, redução ou esterilização de microrganismos baseado na pulsão de fontes de radiação [1]. Desta forma, espera-se o arrastamento do tempo de prateleira muito maior do que o normal para o alimento convencional. Também pode ser empregada nos alimentos sob suspeita da existência de patógenos, que causam malefícios à saúde.

No Brasil, a técnica já possui respaldo normativo da ANVISA, com a Resolução nº 21 de 2001 [2]. A legislação ainda traz as principais fontes radioativas que podem ser empregadas, normatizadas pela Comissão de Energia Nuclear (CNEN). A Comissão ainda versa sobre as dosagens mínimas e máximas de radiação, fazendo preservar a sensorialidade e garantindo um alimento inócuo ao consumo.

 

Imagem um. Notícia reitera a possibilidade da redução de fome no Brasil com a utilização de técnicas de irradiação. O país perde mais de 30% de tudo o que é produzido, sendo que 33 milhões de brasileiros passam por situação de fome [2]. Na figura, podemos observar um trator sendo operado ao lado de pilhas de frutos e vegetais que foram perdidos. Foto do Instituto Cidade Amiga.

No Brasil, ainda é difícil de encontrarmos produtos inteiros irradiados, como frutas, carnes e vegetais. Os principais alimentos nessa condição são temperos, condimentos, embutidos, salgadinhos e massas [1]. Com o aumento de mercado de alimentos sem aditivos químicos, orgânicos ou com métodos alternativos de produção, as técnicas de irradiação estão em pleno crescimento no país.

Para ocorrer a irradiação, precisamos tanto do alimento quanto da fonte emissora de radiação. Essa fonte pode ser ionizante ou não ionizante, diferenciando se a fonte emissora pode retirar elétrons de valência dos tecidos — aqueles da camada mais afastada do núcleo — ou não [3]. Exemplos são os átomos radioativos, energia ultravioleta, micro-ondas, ultrassom e até raios-x. Destes, os átomos que emitem radiação (alfa, beta e gama) e raios-x são ionizantes.

O principal elemento radioativo utilizado na exposição radioativa é o cobalto 60, que é produtor de raios gama [6]. O mesmo é manipulado em ambiente controlado na sala de processamento para que não tenha contato com o alimento. Assim, por radiação gama, espera-se a interrupção das funções orgânicas que levam o produto ao apodrecimento.

Quanto maior a dose, menor o número de sobreviventes e a velocidade das reações químicas [6]. Além de diminuir a quantidade de organismos, a diminuição do tempo de maturação dos vegetais também é possível com o tratamento.

O tratamento com baixas doses de radiação pode inibir o brotamento em alimentos como cebola, alho e batata, por exemplo [6]. A esse processo chamamos de radurização. Essa finalidade é diferente da radiopasteurização (controle microbiológico com dose média) e radapertização (esterilização completa do alimento com dose mais alta).

Para se tratar o alimento com radiação, é necessário que o grau de tolerância do mesmo seja maior do que o grau do inseto, verme, bactéria ou vírus que queremos desinfestar [4]. Estes valores de tolerância são tabelados e os principais trabalhos dos cientistas refletem sobre o melhor custo-benefício para os diferentes tipos de alimentos.

A unidade de medida utilizada para irradiação é o Gray (Gy. Ele quantifica a quantidade de energia da radiação ionizante absorvida por unidade de massa. No processo de conservação de alimentos, é comum que a unidade seja mil vezes o valor de Gray, ou seja, kGy.

Depois, é necessário que o alimento esteja adequado às regras mercadológicas das diferentes regiões e países [1]. Para exportar, importar e distribuir os alimentos, certos conjuntos de regras são estabelecidos pela ANVISA e a CNEN.

 

Imagem dois. O símbolo radura identifica, nas embalagens, os produtos em que qualquer componente passou por irradiação [5]. Essa é uma das regras contidas na Instrução Normativa nº 9 de 2011, que delimita critérios ao processo. Na figura, podemos observar diversos alimentos circulando o símbolo dos irradiados.

Os alimentos precisam de doses de radiação diferentes baseados em sua tolerância para que os tratamentos sejam eficazes e aceitáveis. Para o feijão, por exemplo, seria algo em torno de 2 a 6 kGy. Enquanto para a goiaba seria algo em torno de 0,3 a 0,6 kGy [1]. Descobre-se a dose ideal justamente para influenciar na aparência, no aroma, firmeza e até na manutenção da casca.

Ou seja, a dose certa pode depender do que for melhor para a aceitação sensorial do alimento. Em algumas situações, pode ser um pouco maior ou menor, mas o objetivo principal é sempre manter o alimento conservado e bem aceito pela população.

Mesmo com todo esse respaldo de segurança, muitas pessoas têm medo do efeito da irradiação na saúde. O principal mito diz que o alimento continua a emitir radiação após seu tratamento, e essa emissão pode fazer mal aos nossos tecidos e células.

Esse medo é gerado pela concepção equivocada dos processos de irradiação. As pessoas confundem a irradiação com contaminação, ou seja, elas acreditam que a fonte emissora continua a emitir elementos radioativos depois do tratamento.

A contaminação por partículas radioativas não ocorre em alimentos, pois o elemento não permanece em contato com o alimento [6]. Essas partículas permanecem numa câmara especial embaixo do irradiador, conhecida como piscina de armazenagem. Neste local o elemento é processado e expedido, sem entrar em contato com o alimento.

A dose correta da irradiação também é um fator que garante a segurança do alimento, pois indica que durante a distribuição, exposição e processamento do alimento não existam componentes sendo irradiados em doses acima da permitida. Assim, atribui-se que o alimento é tão seguro ao consumo quanto um braço após o procedimento de tomografia ou um prato após passar pelo micro-ondas elétrico.

Caso os Centros de Irradiação de Alimentos (CIA) virassem uma política pública brasileira, poderíamos ter mais investimentos na construção e manutenção dos irradiadores. Dessa forma, não somente a indústria de alimentos iria acabar ganhando, mas também a indústria química, precisando criar mais aceleradores para manter os suprimentos desses elementos radioativos. Quantos mais cientistas e engenheiros iriam ser formados e empregados com essa política?

Assim, os centros de distribuição e armazéns públicos precisariam aumentar de tamanho ou de escala de complexidade, uma vez que teriam alimentos por muito mais tempo para serem guardados. O estoque de alimentos iria compensar o período de estiagem ou de baixa nas plantações. Garante-se, dessa forma, alimentos mais baratos por muito mais tempo.

Nessa perspectiva, iriam ganhar a população, os agentes agropecuários, produtores de alimentos, engenheiros e toda uma nova gama de atores desse processo. Mas esse ainda parece ser um caminho que vamos ter que esperar para irradiar, porém não é algo tão impossível de acontecer.

 

Referências
[1]: SILVA, Andréa Ferreira da; ROZA, Cleber Rabelo da. Uso da irradiação em alimentos: revisão. Boletim do Centro de Pesquisa de Processamento de Alimentos, v. 28, n. 1, 2010.
[2]: REDAÇÃO. Irradiação de alimentos pode reduzir fome no Brasil. Portal Monitor Mercantil, 17 jan. 2023. Disponível aqui.
[3]: PINO, Eddy Segura; GIOVEDI, Claudia. Radiação ionizante e suas aplicações na indústria. UNILUS Ensino e Pesquisa, v. 2, n. 2, p. 47-52, 2013.
[4]: REGGIOLLI, Marcia Regina. Os efeitos da irradiação sobre as especiarias. 2020. Tese (Doutorado em Tecnologia Nuclear – Aplicações) – Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares, University of São Paulo, São Paulo, 2020. doi:10.11606/T.85.2020.tde-01092021-144752.
[5]: PAZ, Amanda. Irradiação de alimentos já é legal no Brasil. Portal Saúde, Segurança do Trabalho & Meio Ambiente, 18 set. 2011. Disponível aqui.
[6]: NUNES, Patrícia et al. Os mitos e as verdades da irradiação de alimentos. Caderno de Graduação-Ciências Biológicas e da Saúde-UNIT-PERNAMBUCO, v. 1, n. 3, p. 103-110, 2014.