No cenário político norte-americano existe uma polarização evidente entre dois partidos: Democratas e Republicanos. A história dessa rivalidade remonta ao século 19, com o surgimento do Partido Republicano em 1854 que, em substituição ao partido Whig (1833 – 1854), passaria a ser o novo rival do Partido Democrata, fundado em 1828.
Desde então, existem várias formas de diferenciá-los, seja pelo predomínio geográfico (norte/ sul), pelas cores dos partidos (vermelho/ azul), por suas mascotes (burrinho/ elefantinho) ou opções ideológicas, sendo os Democratas tidos como “Liberais” e os Republicanos como “Conservadores”.
Porém quando foi que tais denominações foram estabelecidas e como isso ajuda a entender o processo de polarização da política americana nos dias de hoje? Tentarei responder a essas questões no texto que segue abaixo.
Antes de começarmos, duas coisas devem ficar claras: a primeira é que a noção de Liberal lá nos EUA é diferente daquela que possuímos no Brasil. Aqui, liberal é alguém associado ao livre mercado, que defende privatizações, um estado restrito com a predominância do mercado para a geração de oportunidades e prosperidade. Lá, o liberal é algo semelhante ao que aqui denominamos de progressista: um sujeito que acredita numa maior participação do estado para gerar igualdade e impulsionar bem-estar à população.
A segunda coisa a se esclarecer é que o Conservadorismo e o Liberalismo são tradições políticas que possuem muitas ramificações e que, por lá, não pertencem exclusivamente a um dos partidos. Se tomarmos o partido Republicano em seu nascimento, poderíamos classificá-lo como o partido liberal, enquanto o partido Democrata de então seria o partido conservador. Às vezes conservador até de mais, com ligações com grupos supremacistas como a Kux Klu Klan, por exemplo.
E quando isso começou a mudar? Quando o Partido Democrata se tornou um partido Liberal e o Partido Republicano se tornou um partido Conservador? E mais: essas denominações funcionam até os dias de hoje? Para responder essas novas perguntas, temos que voltar nossos olhos a três datas: 1936, 1976 e 2008.
O ano de 1936
Essa é a data da primeira reeleição do Democrata Franklin Delano Roosevelt como presidente dos EUA. Roosevelt havia sido eleito em 1932 durante o início da grande depressão, após a quebra da bolsa de NY, em 1929. Naquele momento, uma linha mais liberal começava a ganhar força dentro do partido. Apesar de o Partido Democrata ser ainda muito forte junto aos eleitores brancos, sulistas, da zona rural e mais conservadores, desde a década de 1910, produziu-se dentro da direção do partido uma reformulação ideológica, alinhando-o às ideias que viam no estado planificador um modelo capaz de retirar o país da crise.
Esta linha defendia, portanto, que a crise econômica e um mundo regulado apenas pelas forças do mercado não garantiam o acesso de todos à liberdade (o maior dos valores americanos), pois, para que os estadunidenses fossem realmente livres, o Estado deveria gerar condições de igualdade para todos, como acesso à educação, saúde, previdência e tudo mais.
E era esse justamente o grupo que apoiava o governo de Roosevelt naquele momento e que, a partir de 1936, com sua reeleição, converteu-se em uma hegemonia política nos EUA como um todo, não apenas entre os Democratas. Ou seja, essa forma “liberal” de entender a relação que o governo deveria ter com a população, de mais suporte, de interferência na economia e de maior poder para o governo federal acabou por se tornar a maneira pela qual os políticos de ambos os partidos montavam suas plataformas de campanha.
Isso começa a mudar em 1964, o ano da assinatura da lei do Civil Rights, que criou maior igualdade entre negros e brancos e deu instrumentos legais mais efetivos para o combate do racismo nos EUA. O responsável por articular a aprovação dessa lei foi o presidente Lyndon Johnson, do Partido Democrata. Acontece que a aprovação do Civil Rights, acabou por gerar um cisma dentro do próprio Partido Democrata, que fez com que uma ala bem conservadora liderada por George Wallace, desafiasse Lyndon Johnson nas primárias partidárias, com uma bandeira anti Civil Rights.
Wallace perdeu as primárias, porém, expôs uma divergência entre os Democratas e a existência de um filão eleitoral a ser explorado por seus inimigos republicanos: o eleitor conservador. Não por menos, neste mesmo ano, o partido Republicano lançou um candidato conservador para disputar as eleições contra Lyndon Johnson. Seu nome era Barry Gold Water que, apesar da derrota naquela eleição, foi o responsável por acender uma luz dentro do Partido Republicano. E qual era? Para derrotar os Democratas era preciso afastar os republicanos do liberalismo americano e aproximá-los do conservadorismo.
E foi dessa maneira que, dentro do partido republicano, a ala conservadora gestaram um conservadorismo de tipo novo, ou o neoconservadorismo como se chamou de fato. O neoconservadorismo, misturava o tradicionalismo dos costumes e da política com ideias de livre mercado e comércio internacional, tornando possível juntar em uma mesma plataforma a direita religiosa, empresários do campo militar e economistas ortodoxos.
O ano de 1976
E foi no ano de 1976 que essa corrente demonstrou que tinha chegado para ficar, pois foi quando Ronald Reagan desafiou o então presidente republicano Gerald Ford nas primárias, perdendo para ele por um fio de cabelo. A desconfiança sobre Ford e a antiga ala republicana, tornar-se-ia ainda maior após a derrota de Ford para Jimmy Carter poucos meses depois, tornando-se inevitável que os neoconservadores tomassem conta do Partido Republicano a partir de então. E mais, com a eleição de Reagan em 1980, esse neoconservadorismo extrapolaria as margens do partidarismo, tornando-se a nova hegemonia política nos EUA.
Como no caso da eleição de 1936 que consolidou o modelo liberal como uma visão de mundo amplamente compartilhada, é a eleição de 1980 que consolida uma visão de mundo neoconservadora como aquela que ditaria as regras do jogo eleitoral. Não à toa, Reagan Ganhou em 80, 84, fez seu sucessor, George Bush pai em 88 e em 2000 e 2004 elegeu George Bush filho. E mesmo quando os Democratas chegaram ao poder com Clinton, o período entre 1996 e 2008 é aquele em que o Partido Democrata abandonou suas principais bandeiras liberais e se aproximou de pautas conservadoras, como a defesa do porte de armas, a negação ao aborto, regras mais restritas de imigração, entre outras.
O ano de 2008
E é aqui que chegamos em 2008 e na crise econômica mundial do subprime, que foi responsável por colocar fim à essa hegemonia neoconservadora e exigir redirecionamentos aos dois partidos. A resposta a esse cenário foi um retorno do Partido Democrata ao liberalismo, o progressismo, com Obama. Já o partido Republicano, insistiu com políticos da linha mais neoconservadora, como John McCain e Mitt Romney.
Apenas em 2016 os conservadores projetaram uma mudança, ainda que tímida na direção do liberalismo. Naquele ano, as primárias do partido possuíram um perfil mais eclético, com mulheres, latinos e negros disputando uma chance de se tornarem o candidato que enfrentaria Hillary Clinton. Porém, o vencedor foi Donald Trump, um outsider que, ao contrário do que o partido ensaiava naquele momento, flertando com pautas liberais e multiculturais, conseguiu reunir a base ainda mais conservadora do partido.
Em grande medida, Trump representa um maior diálogo com um eleitor daquele tipo de conservadorismo dos anos 50, anterior ao próprio neoconservadorismo, pautado no nacionalismo, mais tradicionalista, de um perfil religioso mais ortodoxo e que defende a indústria nacional no lugar do mundo global construído a partir de Reagan. Trata-se do que os cientistas políticos americanos chamam de paleoconservadores que, apesar da derrota nas eleições de 2020, parece ter se convertido, por meio do Trumpismo, na nova ala hegemônica do Partido Republicano com um tipo de conservadorismo mais arcaico, tanto nos costumes quanto na economia.
Enquanto isso, com a eleição de Biden, o partido Democrata vai se alinhando ainda mais a seu perfil liberal, progressista, com pautas que miram na taxação de fortunas, criação de um imposto global e no combate às desigualdades econômicas e sociais, suas principais bandeiras.
Em suma, os anos de desarranjos pós 2008, gestaram Liberais ainda mais liberais de um lado e conservadores ainda mais conservadores de outro… os EUA saíram ainda mais polarizados das eleições de 2020 e essa fórmula parece que irá se arrastar até 2024.
Este texto é uma versão escrita de um vídeo gravado no meu canal do YouTube