Há alguns meses, eu decidi que iria aprender a língua japonesa. E não me pergunte de onde veio o ímpeto. É verdade que eu, como muitos, tive infância e adolescência regadas a animes e videogames de origem nipônica e que certamente contribuíram para construir pontes entre o meu imaginário e essa cultura. A decisão de tentar atravessar essas pontes, no entanto, veio de forma difusa, quase displicente. Diante de tantos recursos de aprendizado gratuito disponíveis na internet, um dia me vi perguntando: “por que não?”.
E o que seguiu a partir desse ponto tem me ensinado muito mais do que apenas uma língua.
Como brasileiros, temos uma tendência – até certo ponto justificável – a enxergar a cultura japonesa como quase que uma antítese perfeita da nossa. Localização no globo, extensão territorial, diversidade étnica, desenvolvimento tecnológico, participação em grandes guerras… Para cada um desses quesitos, encontraremos respostas quase que fundamentalmente diferentes entre ambos os países.
E, como que para coroar o sentimento de alteridade, existem os idiomas, que não só não guardam qualquer tipo de parentesco gramatical ou etimológico, como também se baseiam em sistemas de escrita radicalmente distintos. Por vezes, a impressão é de que do lado oposto do globo não há outro país, mas outro universo, envolto em escuridão, inacessível a partir do nosso próprio.
E, talvez justamente por isso, cada mínima vela que se acende em meio a tal escuridão tenha um sabor tão especial.
Imagino que seja conhecimento comum o fato de que a língua japonesa não se vale do nosso alfabeto padrão em sua escrita. Enquanto o Português, assim como muitas outras línguas de origem indo-europeia, se baseia no alfabeto romano de 26 letras, a escrita do Japonês está calcada no uso simultâneo não de um, mas de três grupos distintos de caracteres, cada um com funções específicas dentro desse universo linguístico.
Dois deles funcionam de forma relativamente parecida ao nosso alfabeto. Tratam-se de silabários, contendo a razoável marca de 48 caracteres cada, em que cada caractere representa um som básico do idioma. Simples, não? Pois essa é a base do funcionamento do Hiragana (ひらがな) e do Katakana (カタカナ).
Ambos são perfeitamente equivalentes, no sentido de que, para cada som disponível na língua japonesa, existe um Hiragana e um Katakana. Podemos pegar o exemplo de “Na”, representado por な no Hiragana, e por ナ no Katakana. Decorre disso o fato de que ambos os sistemas podem ser utilizados para formar as mesmas palavras, mas serão utilizados para tipos diferentes de palavras.
Enquanto o primeiro, mais suave e curvilíneo, é utilizado para grafar palavras e conectores gramaticais oriundos do próprio japonês, como さようなら (Sayounara, “adeus”), o segundo, mais reto e anguloso, é geralmente usado para marcar palavras estrangeiras e neologismos, como ナイフ (Naifu, “knife”, do inglês “faca”).
E, por mais que esses sistemas cubram apenas a superfície do oceano de complexidade da escrita da língua japonesa, o acesso a eles me trouxe uma indescritível sensação de poder.
Imagine-se aprendendo Inglês pela primeira vez. Você pode passar os olhos por uma palavra como “hello” e não ter, a princípio, uma noção clara de seu significado. A base comum de escrita do Inglês e do Português, no entanto, pode ser capaz de fornecer pistas, que vão pouco a pouco costurando relações entre os idiomas. Temos aí a capacidade de testar a língua estrangeira com base na nossa própria.
E, por outro lado, ao aprender uma língua como o Japonês, a sensação inicial é de não se ter nada a que se agarrar, nenhum ponto de referência pelo qual se guiar. O mero aprendizado de uma palavra cotidiana como こんにちは (Kon’nichiwa, “olá”) passa pelo aprendizado prévio de que こ tem som de “ko”, ん tem som de “n”, に tem som de “ni”, ち tem som de “chi” e は tem som de “wa” ou “ha”.
Retornamos, assim, ao ponto de alteridade. A distância entre as línguas se evidencia pelo fato de que o aprendizado de uma palavra simples passa obrigatoriamente por aprendizados muito mais profundos e abrangentes, como se precisássemos ser alfabetizados (ou hiraganizados) do zero.
E justamente aí reside a sensação de poder a que me referi anteriormente. Pouco a pouco, o processo de assimilar novos caracteres, entender como soam, e conseguir reconhecê-los e interpretá-los em diferentes situações traz à tona um sentimento de exploração e de expansão da realidade. O que antes eram apenas traços ininteligíveis utilizados por um povo distante passa a se tornar sons que se unem a outros sons para, veja só, formar toda uma rede de significados. E poucas coisas são mais gratificantes do que passar a extrair significado do que antes eram apenas traços.
Com uma sensação quase mágica, pequenos fragmentos desse universo tão distante vão se tornando acessíveis, e a alteridade, antes um empecilho, se torna combustível.
E tudo isso sem sequer pincelar os Kanji, um sistema incrivelmente complexo de mais de 2000 caracteres ideográficos, oriundos da escrita chinesa, cujo estudo gera uma sensação ainda maior de alteridade, e uma quantidade ainda maior de descobertas. Mas quem sabe falemos mais a respeito em textos futuros.