Ao longo de maio deste ano, tivemos um evento extremo que ocorreu no estado do Rio Grande do Sul. Com a grande vazão de água oriunda das chuvas, muitas cidades alagaram e milhares de pessoas ficaram desabrigadas. Outras centenas perderam a vida com as enxurradas. Todo o país sofreu com as inúmeras notícias da catástrofe natural.

As pessoas têm atribuído o desastre a muitos fatores. Alguns responsabilizam a gestão estadual pela aprovação de projetos de alto impacto ambiental, outros reiteram a questão das catástrofes climáticas como desdobramento das mudanças climáticas, etc. A verdade provavelmente está no meio termo entre diversas análises.

Porém, não podemos negar que os impactos de catástrofes “naturais” são sentidos de diferentes formas. E inclusive sobre a maneira como a segurança alimentar e nutricional (SAN) se desdobrará daqui para frente.

No texto de hoje, pretendo abordar a interseccionalidade presente entre a segurança alimentar em período de grandes desastres climáticos/naturais. De quantas maneiras diferentes uma catástrofe de grande magnitude pode afetar a maneira como nutrientes são distribuídos? Há impactos psicossociais relacionados com a insegurança alimentar? Hoje nós vamos aprender sobre isso.

Os desastres climáticos e naturais foram relacionados com a SAN ainda nos anos 90 [1]. No início, houve uma fase neutra (1994-2005) em que os pesquisadores não acreditavam haver impactos das mudanças climáticas na SAN. Logo após 2005 até os dias de hoje, houve a fase negativa, em que a insegurança alimentar aumenta com as mudanças climáticas.

De lá para cá, o número de ocorrências naturais extremas mais do que dobrou ao redor do mundo [2]. Houve uma média de 213 ocorrências/ano de 1990 até 2016. Isso tem contribuído com eventos extremos como aumento da variabilidade das precipitações (inundações e secas extremas) e escoamento de rios, redução na produção de alimentos, aumento da temperatura global (de 1,8ºC a 4ºC), alteração no ciclo de vetores de doenças (mosquitos da dengue, por exemplo) e empobrecimento da composição mineral e biológica do solo.

Todos esses problemas são responsáveis por alterar a SAN de diferentes maneiras. Podemos reconhecer quatro grandes dimensões de alteração: acesso, disponibilidade, utilização e estabilidade dos sistemas alimentares. Alguns até atribuem a dimensão do sobrepeso/obesidade como desdobramento direto dessa insegurança alimentar.

 

Imagem um. Notícia da Agência Brasil informa sobre o lançamento de central de abastecimento para suprir demanda de alimentos para cozinhas solidárias no Rio Grande do Sul [3]. O objetivo é garantir distribuição mais igualitária de refeições para alimentar quem está lidando diariamente com resgate e limpeza das cidades. Na imagem, podemos observar um homem de meia idade e cabelos grisalhos manipulando linguiças em uma grelha fechada de mármore. O mesmo usa óculos, um chapéu branco de cozinha e avental laranja.

Desastres climáticos causam dificuldade de acesso aos alimentos quando há impactos na produção e redução de culturas agrícolas [1]. Juntamente com o comprometimento de renda da população, maiores taxas de fome e insegurança alimentar são esperadas logo após a tragédia climática.

O acesso é dado em conta justamente pelo preço ou presença dos alimentos. Alguns gêneros sobem o valor mais do que outros em situação de risco climático. O arroz é o principal gênero alimentar que sofreu com as enchentes do Rio Grande do Sul, mas o impacto tende a ser sistêmico a outras culturas. Afinal, com a falta do mesmo é comum que a população substitua o componente, o que também os encarece no curto prazo.

A disponibilidade é afetada pelos riscos climáticos, tanto por meio dos efeitos diretos (secas e inundações) quanto pelos efeitos indiretos (aumento de pragas e vetores de doenças, aumento médio do nível do mar e disponibilidade de água potável) [1]. Ela diz respeito ao quantitativo de alimentos saudáveis que efetivamente será usado para alimentação.

De maneira geral, essa dimensão diz respeito à distribuição física dos itens alimentares à população. Quando insuficiente, cadeias de transporte se perdem, diagnósticos sanitários negativos se acumulam e há o aumento do grau de desnutrição, como aconteceu com as enchentes no sul da Bahia em 2022 [4]. No Rio Grande do Sul, também está relacionado com a perda de grandes áreas agricultáveis e redes de apoio e distribuição alimentar.

A disponibilidade afeta pessoas de diferentes maneiras em decorrência de eventos climáticos extremos [1]. A desnutrição em países pobres, por exemplo, é apenas o outro lado da moeda da obesidade/fome oculta presente em países mais ricos. Tudo isso é reflexo de problemas de disponibilidade nas cadeias alimentares locais. 

A obesidade, geralmente baseada em alimentos ultraprocessados, cria um sistema fechado de feedback positivo com os riscos climáticos [1]. Isso ocorre pois os mesmos liberam mais gases de efeito estufa durante sua produção, o que aumenta mais ainda os riscos climáticos e, consequentemente, problemas com disponibilidade de alimentos. Esse cenário cria ambientes alimentares mais áridos com o passar do tempo. Aliás, já leu sobre esses ecossistemas alimentares aqui? Não deixe de conferir esse artigo explicativo!

A utilização diz respeito à qualidade nutricional dos alimentos após desastres climáticos. O estado nutricional, condições de vida e valor social são afetados diretamente pelo grau de utilização dos alimentos. Nutrientes essenciais como micronutrientes (ferro, zinco, enxofre, cálcio, etc.), aminoácidos essenciais e vitaminas são os primeiros a terem sua falta sentida nessas condições.

Dos impactos à saúde, consegue-se observar o aumento de casos de desnutrição, obesidade, alterações na resposta imunológica, hipertensão, cânceres, déficit no desenvolvimento cognitivo de crianças [1]. As populações mais expostas economicamente sofrem com estes estigmas, como bebês, idosos e mulheres. Leia a relação entre as mulheres e a SAN aqui!

 

Imagem dois. Medida provisória adotada pelo Governo Federal autoriza a importação de um milhão de toneladas de arroz [6]. O preço do alimento teve disparada após impactos na produção serem sentidos pela enchente no Rio Grande do Sul. Na imagem, pode-se observar grãos de arroz branco sendo vistos de cima.

A estabilidade é a última dimensão afetada pelos desastres climáticos. Ela engloba as três dimensões já postas. Ela diz respeito ao grau de variabilidade dos sistemas alimentares de maneira geral, analisando o acesso, a disponibilidade e a utilização dos recursos [1]. Porém, ela consegue pontuar impactos diferentes do que as três sendo observadas independentemente.

Com a dimensão da estabilidade, podemos indicar a variabilidade de preços ao longo do tempo, tanto no curto quanto no médio prazo [1]. Processos de urbanização, esgotamento de recursos, ocupação do solo, desmatamento, mudanças climáticas e desastres afetam radicalmente essa dimensão. E a tragédia do sul retrata o quanto a estabilidade influencia na SAN.

Como aprendemos, o clima é um dos principais determinantes aos padrões de oferta e demanda de culturas agrícolas. A variabilidade climática cria padrões diferenciados de distribuição de oferta de alimentos, impactando na presença ou ausência de determinados itens. Os mais vulneráveis são os primeiros a sentirem essa diferença.

Com o passar do tempo, é esperado que a variabilidade fique cada vez mais alta, causando elasticidade alta no preço dos alimentos e reduzindo o consumo de todos os grupos alimentícios [7]. Essa situação é crítica à SAN, e isso pode causar impacto significativo à alimentação gaúcha.

Contrariando os dizeres do governador gaúcho, Eduardo Leite, não há como impactarmos o “comércio local” com o excesso de doações [8]. Toda ajuda de suprimentos é essencial para o soerguimento do estado e a garantia da segurança alimentar, sobretudo aos mais vulneráveis e desabrigados. Até mesmo porque grande parte dos estoques sofreram com as chuvas também nos depósitos.

Com a provável contaminação cruzada, é possível que estes estoques locais se tornem vetores à passagem de leptospirose e outras doenças de caráter zoonótico [9]. Dessa forma, complicações sanitárias são passíveis de acontecerem com a pós-enchente. A disposição de alimentos e água adequados é a maior dificuldade aos moradores nestes momentos.

Apesar de resiliente, o povo gaúcho necessita de toda ajuda possível. Só através de colaboração poderemos sair dessa situação melhor do que quando entramos. Isso é um dever para o Brasil como um todo.

Há muitas pessoas, organizações, cooperativas, movimentos e grupos que estão ativamente trabalhando na compra e distribuição de refeições saudáveis. Essa é uma experiência para que possamos planejar nossa atuação popular em futuras catástrofes climáticas.

Devemos lembrar que, infelizmente, teremos catástrofes mais intensas e impactantes com o passar do tempo. Porém, reconhecendo os riscos e potenciais de certos aparatos logísticos e sociais, a problemática com a insegurança alimentar pode diminuir consideravelmente.

O que achou dessa reflexão? Conseguia pensar em todos esses estigmas envolvendo a tragédia do Rio Grande do Sul? Se possível, não deixe de fazer sua doação ao estado e até o próximo texto!

Referências
[1]: ALPINO, Tais de Moura Ariza et al. Os impactos das mudanças climáticas na Segurança Alimentar e Nutricional: uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, v. 27, p. 273-286, 2022.
[2]: Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). International Fund for Agricultural Development (IFAD). The United Nations Children’s Fund (UNICEF). World Food Programme (WFP). World Health Organization (WHO). The state of food security and nutrition in the world 2018. Building climate resilience for food security and nutrition. Roma: FAO; 2018.
[3]: BRUM, Gabriel. Central vai distribuir alimentos para cozinhas solidárias no RS. Portal RadioAgência, 24 mai. 2024. Disponível aqui.
[4]: ALVES JUNIOR, Alexandre Bernardo. Saneamento e gestão de resposta a desastres frente a situações emergenciais motivadas por enchentes: o caso do extremo sul da Bahia. Trabalho de Conclusão de Curso de Engenharia e Saneamento Ambiental. 54 p. Universidade Federal do Ceará – UFC. 2022.
[5]: QUEIROGA, Amanda; DA LUZ, Maiane Barbalho; FILGUEIRA, Hamilcar José Almeida. A Redução de Riscos de Desastres (RRD) e a resiliência na segurança alimentar e nutricional. Territorium, n. 29 (I), p. 139-148, 2022.
[6]: CARNEIRO, Mariana; DUARTE, Isadora. Com pressão do mercado, governo avalia se  fará venda direta de arroz importado. Portal CNN Brasil, 30 mai. 2024. Disponível aqui.
[7]: DA SILVA, César Roberto Leite; DE CARVALHO, Maria Auxiliadora. Distribuição dos benefícios da estabilidade dos preços agrícolas entre consumidores. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 41, n. 4, p. 723-738, 2019.
[8]: FERRAREZ, Gabriela. Eduardo Leite diz que excesso de doações impacta comércio local e é criticado :’inacreditável’. Portal ND+, 15 mai. 2024. Disponível aqui.
[9]: CONSTANTINO, Gabriel Nivaldo Brito et al. Complicações da leptospirose: uma revisão da literatura. Revista Contemporânea, v. 4, n. 4, p. e4122-e4122, 2024.