Olá, leitoras e leitores! Entrando na onda dos textos sobre iniciação científica que estão saindo todas as segundas no Portal Deviante, venho falar um pouco sobre iniciação científica na área do direito e a minha experiência com isso.

Pesquisas científicas no direito

O Direito não é uma área propriamente científica, mas muito mais uma área técnica. No curso de Direito, estudamos as normas jurídicas, com destaque à Constituição e às leis e a interpretação dessas normas, o que inclui decisões judiciais e técnicas de interpretação.

Claro, existem áreas científicas que se ligam ao Direito, como a Sociologia do Direito, a Antropologia do Direito, a História do Direito, dentre várias outras áreas que chegam para contribuir com esse ramo do conhecimento, mas o Direito, em si, não é uma área científica (embora haja quem discorde).

Dentro dessas áreas é possível pesquisar como determinada lei ou instituto jurídico (o contrato, a propriedade etc.) foram modificados ao longo do tempo, ou mesmo sua aplicação por tribunais no passado. Também é possível analisar os impactos de determinada lei em um grupo social específico ou até mesmo sua percepção sobre normas específicas. Pode-se tentar entender a cultura jurídica de um povo específico, como sua relação com normas jurídicas locais, inclusive aquelas vindas dos costumes. Além de muitas outras contribuições que as diversas áreas do conhecimento podem trazer.

Existem também alguns estudos científicos que se podem fazer a partir ou dentro do Direito. Um exemplo é o estudo de Direito comparado, no qual é necessário investigar as diferenças não apenas das leis, em si, mas da cultura jurídica, como um todo, em países diferente. Também é possível fazer análises estatísticas de fenômenos jurídicos, por exemplo, analisar estatisticamente o sucesso de determinadas demandas ou mesmo o número de vezes em que um tribunal realmente utiliza o que foi produzido no âmbito do amicus curiae ou audiência pública nos fundamentos de sua decisão.

 

Outros projetos de pesquisa dentro da área do Direito

Porém, os projetos de iniciação científica e os TCCs nos cursos de Direito não se limitam a isso. Em pesquisas no Direito, é possível fazer levantamento de jurisprudência de um tribunal sobre um tema, estudos de casos (julgados ou não), análise do debate político por trás de uma lei, dentre outros.

Também são muito comuns os estudos hermenêuticos, nos quais o jurista vai debater os sentidos de uma lei, de preferência permeada pelas normas constitucionais, que irradiam sobre todo o direito, para tentar determinar o sentido mais adequado.

Isso é um processo interpretativo, e como toda interpretação se dá por um agente localizado em determinada cultura, com uma história de vida própria, esse processo não científico, é uma interpretação que não pode fugir totalmente de uma subjetividade. Portanto, cabe ao jurista convencer, com argumentos jurídicos, mas também sociais, o porquê de aquela interpretação ser a mais adequada. Isso, preferencialmente, requer um estudo aprofundado não apenas da lei que se interpreta, mas do direito constitucional, das propostas teóricas que circundam o tema, da jurisprudência sobre o assunto e das técnicas de interpretação, objeto de estudo de uma área chamada Teoria do Direito.

Ah, falando nisso, também existem os estudos da própria Teoria do Direito (temos um SciCast introduzindo o tema), no qual se irão debater os métodos de interpretação e aplicação da lei, de aplicação da Constituição na interpretação da lei, de resolução de conflitos não regulados de direitos fundamentais, dentre outros assuntos.

Dando um passo para o mais amplo, a Filosofia do Direito também é uma possível área de pesquisa. Nessa são debatidas teorias e abordagens filosóficas sobre o próprio direito, seu conceito, sua relação com a justiça, seu lugar no Estado e na sociedade, por exemplo.

 

Minhas pesquisas no direito

Durante minha jornada na faculdade de Direito eu fiz parte de dois projetos de iniciação científica, além da pesquisa que fiz no meu TCC. Não quero me alongar sobre os resultados, mas queria falar um pouco deles pra vocês terem uma ideia de como podem ser pesquisas na área de Direito.

 

Um projeto em História da Filosofia do Direito

O primeiro deles eu fiz no segundo semestre. Foi um projeto na área de História da Filosofia do Direito com o título “Direito e justiça em Tomás de Aquino e Domingo de Soto: os desafios da atualização da tradição aristotélico-tomista na realidade cultural e sócio-econômica da Espanha do século XVI”.

Acabou que a minha participação no projeto não gerou muitos resultados, mas a experiência foi muito importante para mim. No segundo semestre eu não tinha a mínima maturidade acadêmica para uma iniciação científica, além de que o tema era complicado, ele envolvia uma virada no próprio conceito de propriedade, mas eu nem conhecia o conceito de propriedade no nosso direito. Fora isso, o projeto se tratava de ler um jurista espanhol do século XVI (o que pressupõe entender o pensamento dentro do contexto histórico do autor) a partir de Aristóteles e Tomás de Aquino, que, na época, eu também tinha só aquele conhecimento mais básico da escola e das aulas de filosofia geral.

Além disso, o projeto durou um ano, mas eu entrei na metade, após outro pesquisador, que eu estava substituindo, ter saído. Esse outro aluno já tinha avançado muito no tema e até eu fazer as leituras para entender o que ele tinha produzido, o projeto já estava no fim. Ao menos consegui apresentar o resultado em alguns eventos e dar alguma publicidade a eles.

Ainda assim, as leituras que eu fiz, o entendimento do que é um projeto de iniciação científica e do que é uma pesquisa no Direito me abriram portas. Eu me interessei por aquilo e queria mais. Consegui entrar em mais um lá pelo 4º ou 5º semestre, agora com muito mais conhecimento jurídico e maturidade acadêmica.

 

Um projeto comparando direito civil e direito empresarial

Meu segundo projeto de iniciação científica veio de uma proposta do meu professor de Direito Empresarial. Ele queria comparar um instituto chamado solidariedade (ou obrigação solidária) tal como era usado no Direito Civil e no Direito Cambial (uma parte do Direito Empresarial que estuda os títulos de crédito, como cheque, nota promissória, duplicada, letra de câmbio).

Esse eu fiz a pesquisa do zero, com orientação desse professor e co-orientação do meu professor de Direito Civil (que mais tarde foi meu orientador no TCC). Fazendo pesquisas iniciais, eu vi que muitos autores falavam que ambos eram diferentes, mas ninguém falava propriamente o porquê e o como eram diferentes.

Só para entenderem, a obrigação solidária, basicamente, ocorre quando temos muitos credores ou muitos credores de uma mesma dívida e, por lei ou por contrato (ou por título de crédito), o credor pode cobrar a dívida de qualquer devedor como se ele fosse o único (solidariedade passiva), ou o devedor pode ser cobrado de qualquer credor como se fosse o único (solidariedade passiva). Depois os devedores ou credores solidários se resolvem entre eles.

Vou dar um exemplo da solidariedade ativa, que é a que importa mais pra minha pesquisa, já que é a única que existe nos títulos de crédito. Imaginem que Fencas, Guaxa e Tarik compraram um videogame de mim. Eles vão dividir o videogame e combinaram que iriam me pagar 3000 reais (provavelmente cada um vai pagar 1000, ou outro valor, conforme o que eles concordaram entre eles).

Porém, como eu desconfio que o Fencas é caloteiro, coloquei no contrato uma clausula que diz que a obrigação é solidária. Com essa cláusula, eu não preciso cobrar 1000 de cada um. Eu posso cobrar o Tarik (que sei que é bom pagador) dos 3000 reais (cobro como se ele fosse o único devedor). Depois, ele que se vire pra cobrar o Fencas e o Guaxa.

Já nos títulos de crédito, uma natureza deles é que eu sempre posso passar pra frente. Posso pegar uma nota promissória que o Fencas me deu e passar pro Guaxa, que pode passar pra Jujuba e assim por diante. Se o Tarik foi o último a pegar a nota, poderá cobrar o valor total que está na nota de qualquer uma das pessoas que passou essa nota pra frente (e assinou, claro). A pessoa que pagar, pode cobrar de qualquer um que pagou antes dela, e assim por diante, até chegar em quem emitiu o título.

Para comparar os dois, eu fiz várias pesquisas. Peguei fontes históricas, de juristas do passado, análises da literatura de ambas as áreas (direito civil e direito cambial), além de um estudo rigoroso das leis que regiam cada um dos institutos.

Diante de tudo isso, eu iria analisar se: (a) eram o mesmo instituto, (b) se a solidariedade cambial era uma espécie de solidariedade civil, ou (c) se eram totalmente diferente. A relevância prática disso é que, nos casos (a) e (b), um juiz poderia aplicar as regras da solidariedade civil, de forma subsidiária, aos títulos de crédito e à solidariedade cambial.

O que achei interessante nessa pesquisa é que, depois de muita leitura, eu estava produzindo o relatório final e o artigo para publicação defendendo ferrenhamente que a hipótese (b), que uma era espécie da outra. Porém, para fazer isso, eu colocava tantos poréns e tantas exceções que meu orientador me deu o toque que, na verdade, eu estava era provando que são diferentes. Diante disso, mudei as conclusões e aceitei que, na verdade, são diferentes mesmo. Ia ser bem mais legal provar que eram a mesma coisa, porque eu estaria indo no sentido contrário do que toda a literatura falava (ainda que sem mostrar os fundamentos), mas mesmo assim a pesquisa rendeu resultados, porque eu pude montar um quadro comparativo destacando todas as diferenças existentes.

Dá pra tirar algumas lições valiosas disso. Primeiro, o pesquisador sempre tem sua subjetividade, e a visão de uma outra pessoa pode ajudar a filtrá-la, por isso as conversas com o orientador e com outros pesquisadores são muito importantes, afinal, o conhecimento se constrói coletivamente. Segundo, o pesquisador não pode ser arrogante e deve sempre estar disposto a perceber que os resultados levar a conclusões diferentes das que ele espera.

 

Pra fechar

Bom, espero que tenha gostado de saber um pouco sobre iniciação científica no Direito. Se você é da área, conta aí nos comentários sobre seus projetos de iniciação científica ou mesmo sobre seu TCC.