Um substituto mais econômico para as manteigas? O próprio nascimento da margarina se deu com o objetivo de encontrar uma alternativa barata para esse historicamente consagrado derivado do leite. Hoje vamos entender como e onde surgiu a margarina e a sua jornada histórica até chegar às prateleiras dos supermercados nos dias atuais.
Quando o ser humano deixou a vida de nômade caçador-coletor e passou a viver em assentamentos, a domesticação de animais tornou-se parte da sua cultura. Desde então, o leite pôde ser adotado como parte da alimentação básica dessa população, mas com uma ressalva, já que, logicamente, não havia refrigeração nem embalagens longa-vida até poucas décadas atrás. Portanto, ao longo desses milênios de desenvolvimento da pecuária, o consumo de leite fresco somente era possível no dia em que foi ordenhado. Mas como armazenar o excedente de leite dos períodos mais produtivos para consumir e ter acesso a seus nutrientes nos períodos de produção mais escassa? Foi daí que surgiram os derivados de leite, tal qual iogurtes e queijos, em que o leite é fermentado de forma controlada para que ele “estrague” ao longo dos dias de forma que resulte em um alimento seguro e apreciável.
Outro derivado importante é a manteiga, que tem uma história estimada de cerca de 4 mil anos. Na sua produção, a porção de água do leite é removida, deixando apenas a fração gordurosa. Essa gordura passa por diversos processos, como batedura (para que se obtenha a manteiga na consistência adequada), malaxagem (em que o se remove o restante de água que ainda tiver após a batedura), entre outros, mas o fato importante é que a ausência de água retarda as ações microbianas, aumentando a vida útil da manteiga, que consegue permanecer por meses apreciável e capaz de atender às nossas necessidades nutricionais.
Porém, mesmo os leites mais gordurosos têm menos de 10% de gordura, o que não é um problema em fazendas com uma geração produtiva de leite, mas é insuficiente para suprir a demanda de uma população urbana crescente do século XIX, que já se amontoa em cidades distantes dos produtores rurais, antes mesmo da invenção de tecnologias de preservação e aumento da vida útil de alimentos como o leite.
Desse modo, a oferta de manteiga nas aglomerações urbanas não atendia a demanda, elevando o seu preço e elitizando o produto. Nesse contexto, o imperador da França Napoleão III ofereceu um prêmio a quem descobrisse uma alternativa à manteiga para compor a alimentação dos soldados e das camadas mais pobres da crescente população urbana. A partir de tal incentivo, o químico francês Hippolyte Mège-Mouriès patenteou a margarina em 1869. A popularização ocorreu alguns anos depois com a venda da patente para a indústria neerlandesa Jurgens (que hoje está absorvida pela Unilever) e pelo desenvolvimento de fórmulas próprias por dezenas de outras companhias.
As diferentes fórmulas de margarina no século XIX tinham como base a mistura de sebo bovino com água ou soro de leite (lembrando que o soro do leite é a porção aquosa que era descartada na produção de manteiga e queijo). Vamos entender em um texto futuro que essa mistura de gordura com água se dá pela formação de uma emulsão, característica importante para definir a cremosidade da margarina. Algumas formulações do século XIX já utilizavam óleo vegetal para um maior rendimento da receita, mas como a consistência líquida dos óleos vegetais não era adequada à consistência esperada para que a margarina imitasse a manteiga, a gordura animal ainda era a principal matéria-prima nesse período.
Durante o século XIX, foram desenvolvidas técnicas de hidrogenação de compostos de carbono, que consiste em reagi-los com gás hidrogênio na presença de certas cerâmicas ou metais. Na virada do século, a aplicação dessas técnicas nas moléculas dos óleos vegetais resultou na alteração da sua consistência, tornando os óleos líquidos em pastosos. Nasce assim a gordura vegetal hidrogenada, cujo processo de formação trataremos em outro texto. Além desse ponto de virada, o aprimoramento de técnicas industriais que facilitaram a extração dos óleos tornaram os derivados vegetais cada vez mais baratos. Ao longo das três primeiras décadas do século XX, a gordura vegetal hidrogenada foi sendo adicionada à receita da margarina de forma gradativa, barateando ainda mais o preço, até que, na escassez dos anos 30, o sebo animal deixou de ser utilizado totalmente em favor à gordura vegetal.
Como tanto a gordura animal quanto a vegetal hidrogenada têm a coloração branca, as margarinas sempre tiveram algum corante que dê a coloração amarelada típica da manteiga natural. O beta-caroteno (o mesmo da cenoura), o urucum e a cúrcuma (açafrão-da-terra) são os corantes mais utilizado para essa função.
A guerra dos produtores de manteiga
A introdução da margarina ao mercado dominado pela manteiga foi particularmente traumática para os fazendeiros dos Estados Unidos. A frase do senador de Wisconsin (então conhecida como “Terra do laticínio”) reflete bem esse sentimento: “Quero manteiga, que tem o aroma natural da vida e da saúde. Recuso-me a aceitar como substituto a gordura animal, amadurecida sob o frio da morte, misturada com óleos vegetais e aromatizada por truques químicos.”
Diversos estados os Estados Unidos e Canadá chegaram a atender o lobby destes produtores, cobrando taxas ou até proibindo a comercialização da margarina. Mas a maioria dos estados, embora não se chegasse a proibir totalmente a margarina, tiveram algumas leis que condicionaram sua comercialização a não aplicação do corante amarelo, a fim de reforçar o aspecto artificial das margarinas e realçar a diferença de qualidade na comparação com a manteiga.
Em alguns casos, houve a obrigatoriedade do uso de coloração rosa. Em outros, o corante amarelo, que não poderia ser inserido na base da margarina durante a produção industrial, poderia ser fornecido em separado. Ou seja, o consumidor comprava a margarina, que vinha branca, acompanhada de uma porção de corante para ser misturado manualmente apenas na hora do consumo, para aí sim dar a coloração amarelada.
A força política desse movimento pode ter sido encabeçada pelos fazendeiros e produtores rurais, mas é importante ressaltar também que havia um movimento já questionando e fiscalizando a segurança alimentar da indústria de alimentos, que crescia exponencialmente desde o século XIX e que cruzava cada vez cada vez mais com a indústria química. Em 1906, por exemplo, foi fundada a FDA, a agência norte-americana que regulamenta a indústria de alimentos, entre outras áreas ligadas à saúde.
No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos seguintes, a necessidade de suprir a população com produtos de baixo custo se sobressaiu em relação aos desejos dos lobistas da manteiga. As sanções foram caindo e os fabricantes de margarina puderam dar ao seu produto a aparência que fosse mais aprazível aos consumidores, ou seja, a aparência mais próxima possível da manteiga. A última lei restringindo a comercialização de margarina com corante só caiu em 1967, embora ainda existam até hoje impostos para a inibição do consumo da margarina.
Aqui discutimos como a margarina nasceu e se transformou até se estabelecer no mercado mundial. Mas do que ela é feita hoje? O que é o processo de hidrogenação da gordura? O que é gordura trans, vilã da saúde tão associada à margarina? Existe margarina “zero trans”? Qual é a diferença entre “margarina” e “creme vegetal”? Já que a margarina é feita de gordura vegetal, ela é um produto vegano? Margarinas “boas para o coração” são produtos de qualidade? Responderemos essas e outras perguntas nos próximos textos sobre margarinas. Fique de olho para não perder!
Referências
< https://en.wikipedia.org/wiki/Margarine >
< https://clickamericana.com/topics/food-drink/yellow-long-legal-battle-butter-colored-margarine-1948 >