A doença de Hansen (ou hanseníase) é uma doença repleta de mitos ao seu redor. Muitas pessoas se surpreendem ao saber que ela existe, inclusive tendo um aumento de casos atualmente. Tudo que aconteceu em volta dessa doença serve para explicar como a história e saúde pública estão interligadas.

No texto de hoje vou comentar o cenário atual da hanseníase, como a religião por muito tempo fez uma caça aos acometidos dessa doença e a partir disso refletir um pouco sobre saúde coletiva.

 

A hanseníase atualmente

(imagem 1 – fita de janeiro roxo, considerado o mês de conscientização da hanseníase, fonte da imagem link)

Importante para o iniciar o texto que o termo “Lepra” para se designar a essa doença não é mais utilizado, sendo essa uma proposta dos pesquisadores da saúde pública no final da década de 60. O principal objetivo da mudança é afastar as fantasias e preconceitos que rondam a doença, facilitando a educação em saúde (1). 

O microrganismo responsável pela doença foi descoberto pelo Dr. Gerhard Armauer Hansen em 1874, um médico norueguês que procurava bactérias desconhecidas nos nódulos da pele dos leprosos, por isso a doença foi chamada de doença de Hansen (link).

A hoje conhecida como Hanseníase é uma doença que tem tratamento e cura, disponível inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS), que vai desde o diagnóstico, tratamento medicamentoso e acompanhamento (link).

A hanseníase é uma doença bíblica, que até os dias de hoje está presente na sociedade. De acordo com os dados epidemiológicos de 2023, o Brasil é o segundo país com mais casos da doença atualmente, atrás apenas da Índia. Aqui em território brasileiro, entre os anos de 2017 e 2021, foram registrados quase 120 mil casos (link). Só entre os meses de janeiro e novembro do ano de 2023 o país registrou 19 mil casos, representando um aumento de 5% em relação ao ano anterior (link). 

Vale ressaltar que esses números são resultados de uma maior atenção no diagnóstico de casos, ou seja, quando se aumenta a investigação da doença, logo se acham mais casos. Por isso são importantes as ações de prevenção em saúde, uma vez que se tem noção do quanto determinada patologia é abrangente, o que possibilita direcionar as políticas de saúde coletiva. 

Tais dados mostram que atualmente a hanseníase, considerada uma das doenças mais antigas a afligir o ser humano, continua atual. Uma patologia infectocontagiosa de evolução crônica que se manifesta, principalmente, por lesões cutâneas com diminuição de sensibilidade térmica, dolorosa e tátil, uma vez que o Mycobacterium leprae (M. leprae), agente causador da doença de Hansen, acomete células cutâneas e nervosas periféricas (1).

(imagem 2 – desenho da mão com manchas na logo do janeiro roxo, fonte link)

Os sinais e sintomas mais conhecidos são o aparecimento de manchas, que podem ser brancas, avermelhadas, acastanhadas ou amarronzadas, e/ou áreas da pele com alteração da sensibilidade e o comprometimento dos nervos periféricos, geralmente com engrossamento da pele, associado a alterações sensitivas, motoras e/ou autonômicas. Embora atualmente exista cura, a hanseníase pode causar danos e lesões neuronais irreversíveis (link). 

Acho que até aqui ficou claro como a hanseníase está presente nos dias atuais e tem importante influência dentro da saúde pública. Com essa introdução vamos voltar no tempo e entender como todo esse estigma ao redor da doença começou com uma talvez “falsa epidemia”.

 

Como ter uma doença se tornou pecado

As referências sobre o surgimento da lepra no mundo divergem muito e não é possível ter real noção do seu início. Estima-se que seja conhecida há mais de três ou quatro mil anos na Índia, Japão e China, na qual se faz referência a sinais e sintomas de uma doença parecidos com o da hanseníase. Também já existiam registros no Egito de quatro mil e trezentos anos A. C, segundo um papiro da época de Ramsés II (1).

Vale ressaltar que existem muito mais referências bem mais antigas sobre a hanseníase, porém muitas se perderam ou tiveram traduções erradas, fazendo com o que a história dessa patologia venha de antes do que se pode registrar. 

Em relação a sua chegada na Europa, acredita-se que tenha sido levada para as proximidades do Mediterrâneo pelas conquistas de Alexandre, o Grande, rei da Macedônia, que se estenderam da Grécia à Índia. Durante as campanhas romanas, partiu do Egito e do Oriente para a Itália. Porém, ganhou pouca importância, a disseminação da doença no velho continente veio depois (3).

 

A hanseníase se instala sorrateiramente na sociedade altamente cristã europeia

Com a expansão do poder da igreja, após o fim do império romano, toda forma de conhecimento, registrado por meio da escrita, pertencia e era passada por meio das bibliotecas católicas, incluindo as descobertas médicas. Por cuidar dos enfermos ser considerado uma tarefa cristã, logo os primeiros esboços que viriam a ser considerados hospitais foram construídos com financiamento da religião (3). 

(imagem 3 – ilustração representando as cruzadas com cavaleiros, fonte link)

Paralelo a isso, a população urbana na Europa ficava maior, uma série de alterações climáticas na região favoreceram o plantio, mais alimentos em estoque e a comercialização entre as cidades tornou-se fundamental no dia a dia. Somando-se a um novo fato, o início das cruzadas, isso impulsionou a maior circulação de pessoas e as transações comerciais (3).  

De acordo com Stefan Cunha Ujvari, no seu livro História das epidemias (3):

A Europa voltava a ter grandes aglomerados populacionais, o que favorecia a disseminação de infecções e epidemias. Essas concentrações humanas se interligavam novamente pelas rotas comerciais, que propiciavam o deslocamento dos microrganismos responsáveis por infecções de cidade para cidade. Porém, não se vivenciou uma epidemia nesse momento, mas uma falsa epidemia.

Por qual motivo a hanseníase foi considerada uma falsa epidemia? 

De acordo com o site Invivo – Museu da Vida (link):

Narrativas religiosas associavam as marcas na carne, sinal comum da doença, aos desvios da alma: eram os sacerdotes, e não os médicos, que davam o diagnóstico. No Velho Testamento, o rei Uzziah foi punido por Deus com a doença, por ter realizado uma cerimônia exclusiva aos sacerdotes. Mesmo sendo rei, teve que ir morar numa casa isolada e não foi enterrado no cemitério dos soberanos.

De forma resumida podemos entender que o contexto de cruzadas e um grande poder da igreja fez com que aumentasse a busca e punição de pessoas consideradas “hereges”. Dessa forma a hanseníase passou a ser conhecida como uma doença que seria a marca da heresia.

De acordo com o já citado Stefan Cunha Ujvari (3):

No Antigo Testamento hebreu, o Levítico descreve doenças de pele como impurezas da alma que afloram e, por isso, as pessoas que as possuem devem ser banidas da comunidade para sua purificação.

Uma vez que a igreja assumiu a frente nos cuidados de saúde na época, ela sustentava a ideia de que as lesões cutâneas causadas pela hanseníase eram sinais de impurezas, além de que os acometidos estavam sendo castigados por Deus e deveriam ser isolados da sociedade (3).

Existiam as chamadas “casas de lázaros”, local utilizado para abrigar os doentes. Aos que não eram isolados, esses deveriam usar luvas e roupas especiais, carregarem sinetas para anunciar a sua presença, além de ser proibido aos doentes entrarem nas igrejas (link).

(imagem 4 – desenho de pessoas na idade média encontrando um doente no meio da estrada, fonte link)

A sociedade medieval encarava os leprosos com medo, desconfiança e ódio, a doença era vista como a pior doença possível. Lendas medievais que circulavam pela época afirmavam que o imperador romano Constantino teria ficado leproso ao perseguir cristãos e se curado logo após se converter ao cristianismos. A mesma lenda afirma que os leprosos se banham com sangue humano para curar as feridas das chagas, usando serpentes como remédio, podendo, devido a isso, trocar de pele (2).

Associavam a hanseníase a perversões sexuais e/ou atos conspiratórios contra a sociedade, sejam ligados ao indivíduo doente ou a algum antepassado, uma vez que a doença era considerada hereditária (2). 

Por ser considerada uma doença sem cura na época, os curados eram considerados milagres, algo comparável à ressurreição dos mortos (link). Na Bíblia há a passagem na qual Jesus cura Lázaro, por isso a hanseníase era conhecida nessa época como Mal de Lázaro e os que tinham a patologia chamados de “Lazarentos” (link).

Até hoje não é claro se existiu de fato uma grande epidemia de hanseníase na Europa durante as cruzadas. Em razão do discurso de perseguição disseminado pelas igrejas, qualquer outra doença na pele poderia ser diagnosticada como “lepra”, toda pessoa que surgia com manchas na pela era denunciados pelos seus próximos. Além disso, seu diagnóstico era realizado por pessoas comuns ou do clero (1, 3). 

Pelo fato de não ser uma doença de contágio simples, é difícil explicar como apareceram tantos casos de lepra na Europa no período da perseguição. E mais, não é todo paciente que, ao entrar em contato com o agente causador da doença, vai desenvolvê-la. Portanto, além de a doença não ser tão contagiosa, quem a adquire precisa ser suscetível ao agente transmissor.(…). A epidemia de lepra deve ter sido “criada” em razão do dogma religioso, ao qual um imenso número de seguidores da Igreja obedece com rigor participando da busca de casos entre a população (3).

Porém alguns dados corroboram que de fato existiu uma grande incidência de casos de hanseníase durante a idade média, por exemplo: os exames do esqueleto dos leprosos que permanecem nos lázaros na Dinamarca mostraram que uma elevada percentagem de pessoas realmente tinha a doença, particularmente os seus crânios não apresentavam a espinha nasal anterior (link).

O auge da perseguição contra os diagnosticados com hanseníase veio no ano de 1321, com o decreto que permitia que os doentes fossem queimados, além de suas propriedades confiscadas. Milhares de leprosos queimados em fogueiras, uma busca que já não seguia nenhum critério.   

(imagem 5 – ilustração de pessoas doentes sendo queimadas na fogueira, fonte link)

Nesse período passaram a circular boatos de que um “leproso infectou poços e rios na França, com o objetivo de espalhar a doença aos ‘sãos’”. Uma série de supostos complôs dos doentes contra a sociedade surgiu, fazendo com que a perseguição aumentasse (2).

A seguinte publicação da época proclamava contra os doentes que permaneciam sem punição (2): 

Aos leprosos que confessarem seus crimes devem ser queimados, os que não torturados até revelarem a verdade – e assim serem queimados. As mulheres leprosas têm o mesmo destino, a menos que estejam grávidas, essas ficam segregadas e logo após o parto conduzidas ao fogo. Os com menos de 14 anos serão segregados e separados os meninos das meninas, ao completarem 15 anos (…)  

Apenas em 1336 o Papa Benedito XII admitiu que a perseguição contra os leprosos foi injusta, sendo esse considerado o início do fim da pandemia na Idade Média. Outro fator importante é que o diagnóstico passou a ser feito por profissionais de saúde (3). 

Estudos acreditam que a diminuição da hanseníase na Idade Média se deu porque a população europeia ganhou uma resistência maior ao patógeno causador da doença. Existem estudos que indicam que até os dias atuais a população na Europa é mais resistente à doença, quando comparada a população mundial (link). 

Pode-se considerar também que as ciências médicas passaram por uma evolução, além de já se ter estabelecido a segregação dos doentes e o fim de grandes deslocamentos populacionais do Oriente Médio para a Europa (2).  

Seja uma falsa epidemia ou não, nesse momento a Europa enfrenta outras questões que colocam a hanseníase de lado. A peste negra, que teve papel devastador para os que já tinham sequelas da Hanseníase, é uma perseguição a bruxas, mas esse já é tema para outro texto. 

 

A saúde pública e coletiva refletindo a história

É impossível dissociar a saúde pública e coletiva da contextualização da época e da sociedade durante determinado período. Como exemplos mais recentes temos a pandemia da AIDS/HIV, sobre a qual qual já escrevi texto aqui, em que muitos dos preconceitos contra a população LGBTQIA + interferiram no modo como foi tratada a doença.

Ou no exemplo mais recente da pandemia de COVID-19. No futuro, quando contarmos essa história, ela vai está totalmente ligada ao momento em que vivemos, seja nas notícias falsas, no aumento do discurso negacionista ou até mesmo em como as novas tecnologias conseguiram fornecer uma vacina em tempo recorde.

(imagem 6 – cemitérios lotados de covas comuns durante a pandemia de COVID-19 no Br, fonte link)

 

No livro O Corpo: O homem doente e sua história (1988) os autores afirmam que

A doença é um elemento de desorganização e organização social; a respeito ela torna mais visíveis as articulações essenciais do grupo, as linhas de forças e as tensões que ultrapassam (4). 

As doenças e pandemias servem como uma lupa para as questões sociais e em como elas impactam na sociedade. No caso da pandemia de COVID-19 vimos diante da gente como essas questões estruturais impactaram o Brasil e o Mundo. Desde o acesso às coisas ditas “simples”, como água e máscara, até às mais complexas, como o acesso universal à saúde e vacinas.

Talvez a gente possa pensar que isso não vai se repetir, porém já vemos a alta dos casos de Dengue que estamos tendo no início de 2024. O mesmo padrão repete questões estruturais, misturadas com um racismo ambiental, somando-se ainda a crise climática, assunto esse que já abordei em texto aqui no Deviante. 

Voltando para a hanseníase, ela teve um importante destaque na história da idade média europeia, de modo a entendermos atualmente como a saúde pública e coletiva reflete os medos e anseios de uma época. Sobre essa doença ainda temos muita história pra contar e reflexões a fazer, então deixamos aqui o velho continente e vamos para terras tupiniquins ver como a hanseníase reflete até os dias atuais, mas essa história vai ficar para um segundo texto, então até lá.

 

Fonte da imagem de capa link

 

REFERÊNCIAS: 

( 1 ) EIDT, Letícia Maria. Breve história da hanseníase: sua expansão do mundo para as Américas, o Brasil e o Rio Grande do Sul e sua trajetória na saúde pública brasileira. Saúde e sociedade, v. 13, n. 2, p. 76-88, 2004.

https://www.scielo.br/j/sausoc/a/nXWpzPJ5pfHMDmKZBqkSZMx/#:~:text=A%20hansen%C3%ADase%2C%20conhecida%20desde%20os,sensibilidade%20t%C3%A9rmica%2C%20dolorosa%20e%20t%C3%A1til.

( 2 ) PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. O estigma do pecado: a lepra durante a Idade Média. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 5, n. 1, p. 131-144, 1995. 

https://www.scielosp.org/pdf/physis/1995.v5n1/131-144

( 3 ) UJVARI, Stefan Cunha. A história e suas epidemias: a convivência do homem com os microrganismos. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, v. 45, p. 212-212, 2003.

( 4 )  REVEL, J. & PETER, J. P., 1988. O corpo: o homem doente e sua história. In: História: Novos Objetos, (J. Le Goff & P. Mora, orgs.), pp. 141-159, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Ed.