Saudações, sapientes! Vocês já ouviram falar da Guerra dos Chimpanzés de Gombe? Este conflito mudou nosso entendimento sobre chimpanzés e influencia até hoje os estudos sobre as origens evolutivas da violência em nossa espécie e nas dos nossos primos mais próximos. Vem saber mais!

Chimpanzés são uma das espécies mais próximas dos seres humanos. Apesar disso, nosso conhecimento sobre estes primos evolutivos é relativamente escasso e definitivamente bem recente. Somente nos anos 1960, graças aos métodos revolucionários (e controversos) da hoje famosa Jane Goodall, é que passamos a entender melhor como esses animais se comportam, se estruturam e interagem entre si. Foram justamente Goodall e sua equipe que presenciaram e registraram o que ela chamou de “Guerra dos Quatro Anos”, que também foi batizada de “Guerra dos Chimpanzés de Gombe”.

O Parque Nacional de Gombe é uma pequena reserva ambiental na Tanzânia, onde uma estreita faixa de terra protegida margeia o lago Tanganyika. Dentre os grupos de chimpanzés habitando o parque e seus arredores, os Kasakela eram observados por Goodall e sua equipe. 

Em 1971, o líder dos Kasakela morreu e foi substituído por um líder controverso, Humphrey. O problema é que nem todos os membros do grupo aceitaram sua liderança, e os irmãos Charlie e Hugh passaram a liderar uma “dissidência” dentro do grupo. Humphrey era capaz de dominar fisicamente os irmãos individualmente, mas, quando juntos, ele os evitava. Com o tempo, os dois subgrupos começaram a passar cada vez menos tempo reunidos e interagindo, chegando ao ponto de se afastarem fisicamente e ocuparem territórios diferentes dentro da reserva. A partir daí, um novo grupo nasceu, os Kahama, ao sul, liderados pelos irmãos Charlie e Hugh. Este grupo tinha menos integrantes que o remanescente dos Kasakela, ao norte, mas por alguns anos isso não foi um problema, e os dois grupos mantinham as animosidades sob controle, evitando contato e apenas realizando displays de força quando se encontravam (Goodall, 2010)

No início de 1974, um grupo de seis machos dos Kasakela entrou no território dos Kahama de forma silenciosa. Ao encontrarem um macho Kahama se alimentando sozinho, rapidamente o emboscaram e o atacaram com tamanha violência que os cientistas ficaram abismados. Ele conseguiu rastejar para longe, mas nunca mais foi visto. Após o ataque, o “grupo de guerra” dos Kasakela celebrou a vitória com gritos estridentes, arrastando e jogando galhos. Esse tipo de comportamento jamais havia sido presenciado pelos cientistas.

Isso era apenas o começo da guerra. Por quatro anos, excursões de machos Kasakela invadiram o território Kahama, emboscaram os machos do grupo e os eliminaram um a um, sempre com muita violência. Das seis fêmeas dos Kahama, uma foi morta, duas desapareceram e três foram espancadas e sequestradas de volta para o grupo dos Kasakela (Goodall 2010).

Ao fim de 1978, a guerra havia acabado. Os machos Kahama foram eliminados, suas fêmeas e seu território reabsorvidos aos Kasakela, e o status quo pareceu voltar ao normal. A ironia é que os Kahama pareciam servir como um tampão entre os Kasakela e um grupo bem maior e mais forte, os Kalande. Após um breve período em que os Kasakela ocuparam o antigo território dos Kahama, os Kalande passaram a realizar incursões cada vez mais frequentes nesse território, forçando os Kasakela de volta ao norte (Goodall, 2010).

Até o início dos anos 1970, chimpanzés eram considerados animais herbívoros e pacíficos. A brutalidade e o planejamento dos ataques desta guerra, além de outras observações independentes com outros grupos em outras regiões da África, nos forçaram a rever nossa percepção sobre esses animais. A própria Jane Goodall, que registrou os eventos, ficou traumatizada com o que viu e levou anos para aprender a lidar com seu novo conhecimento.

Muitas hipóteses foram levantadas para explicar a barbaridade calculada dos chimpanzés de Gombe. Na época, cientistas acusaram Goodall de ter causado o conflito com seu método de fornecer frutas aos animais em estações de alimentação, mas um estudo recente indica que talvez o verdadeiro motivo tenha sido uma proporção anormalmente grande de machos para fêmeas na população e que Goodall provavelmente não causou o conflito, já que as estações de alimentação já eram fornecidas bem antes da “guerra” (Feldblum et al., 2018). Outra descoberta relativamente recente é que a simples divisão do grupo foi um acontecimento raro, já que estudos genéticos mostram que a maior parte dos grupos de chimpanzés se mantém relativamente estável por centenas ou milhares de anos (Langergraber et al., 2014).

Hoje em dia, temos mais registros de ataques intergrupos letais em chimpanzés e as principais hipóteses para esse tipo de comportamento giram ao redor de acesso a recursos alimentares, espaço ou fêmeas (Wilson & Wrangham, 2003; Wilson et al., 2014). Apesar de ataques sérios e até mesmo letais a fêmeas serem registrados, eles são bem mais comuns contra machos. E no caso de infanticídios, quase sempre as fêmeas voltam a ficar férteis mais rápido sem os filhotes, o que sugere que pode ser vantajoso para um macho matar os filhotes de outros pais para aumentar seu próprio sucesso reprodutivo.

Antigamente, acreditávamos que somente nossa espécie era capaz de planejar e executar ataques coordenados com a clara intenção de matar rivais sem uma disputa direta por algum tipo de recurso. Hoje em dia, temos um modelo animal para nos lembrar dessa parte tão obscura do nosso comportamento. Como sempre, ainda restam muitas dúvidas sobre esse assunto, e ainda há muita pesquisa a ser realizada. Por exemplo, como a agressividade de chimpanzés e humanos se relacionam evolutivamente (Wrangham & Glowacki, 2012)? Ou ainda, por que os bonobos, uma espécie tão próxima de nós quanto os chimpanzés, são tão mais pacíficos (Weinstein, 2016)? Estas perguntas ainda não totalmente respondidas podem nos ajudar a aprender mais sobre nós mesmos e sobre nossa história evolutiva. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Feldblum, J. T., Manfredi, S., Gilby, I. C., & Pusey, A. E. (2018). The timing and causes of a unique chimpanzee community fission preceding Gombe’s “Four‐Year War”. American journal of physical anthropology, 166(3), 730-744.

Goodall, J. (2010). Through a window: My thirty years with the chimpanzees of Gombe. HMH.

Langergraber, K. E., Rowney, C., Schubert, G., Crockford, C., Hobaiter, C., Wittig, R., … & Vigilant, L. (2014). How old are chimpanzee communities? Time to the most recent common ancestor of the Y-chromosome in highly patrilocal societies. Journal of Human Evolution, 69, 1-7.

Weinstein, D. (2016). The “make love, not war” ape: Bonobos and late twentieth-century explanations for war and peace. Endeavour, 40(4), 256-267.

Wilson, M. L., Boesch, C., Fruth, B., Furuichi, T., Gilby, I. C., Hashimoto, C., … & Wrangham, R. W. (2014). Lethal aggression in Pan is better explained by adaptive strategies than human impacts. Nature, 513(7518), 414-417.

Wilson, M. L., & Wrangham, R. W. (2003). Intergroup relations in chimpanzees. Annual Review of Anthropology, 32(1), 363-392.

Wrangham, R. W., & Glowacki, L. (2012). Intergroup aggression in chimpanzees and war in nomadic hunter-gatherers. Human Nature, 23(1), 5-29.