Vivemos em um momento dual sobre a informação. Estamos na era da informação e desinformação ao mesmo tempo. Nunca antes tivemos acesso a tantos dados sendo gerados e propagados. Mas, ao mesmo tempo, muito conteúdo enganador, maléfico ou inocentemente errado está sendo pulverizado como verdadeiro. Nós, comunicadores científicos, estamos atentos às novas vertentes de fake news.
Nesse contexto, nosso grande desafio é defender a liberdade de expressão e pensar em mecanismos possíveis para que os cidadãos consigam descobrir por si mesmos como é uma informação confiável [1]. Em ciência, atualmente, essa é uma das necessidades mais imediatas.
No texto de hoje, vamos entender como é o processo de difusão científica e, a partir disso, conjeturar o papel da cultura alimentar para frear a desinformação científica. Afinal, a cultura alimentar é tão importante assim? Vamos entender seu papel inclusive em políticas públicas!
Difusão científica é a arte e a prática de divulgar a ciência para o maior número possível de interessados no tema [3]. As universidades e demais produtores de conhecimento precisam dessa difusão para que o conhecimento possa fluir, causando saltos tecnológicos e novos entendimentos sobre políticas, governança, gestão, saúde e sociedade.
No passado, não havia mecanismos de difusão que pudessem chegar ao grande público. Esta divulgação ficava restrita em periódicos, revistas, seminários e livros da área, algo que poucas pessoas tinham acesso ou poderiam pagar continuamente [3]. Muito por causa disso a imagem das universidades brasileiras ficou restrita a um modelo elitizado, em que os acadêmicos não prestavam contas à população.
Quando a população fica alienada, perdemos muitos benefícios para com a sociedade. As universidades ficam sem apoio para respaldo financeiro, e a cultura científica fica relegada apenas aos cientistas. Desta forma, as fake news encontram um ambiente ameno para sua reprodução.
No campo da saúde e alimentação, existe ainda mais um agravante. As pessoas são sedentas por informação em saúde, muito por causa da perspectiva individualizada e culpocêntrica dos cuidados pessoais (leia mais aqui!). Muitos interesses, sobretudo comerciais e ideológicos, podem nublar a legitimidade da informação em saúde.
Primeiramente, precisamos entender que existe mais de um jeito de comunicar a ciência. Não me refiro às mídias utilizadas (revista, blog, vlog, etc.) e nem ao formato de conteúdo (jornalístico, vivência, informativo, etc.). Inclusive, essa comunicação pode possuir graus diferentes de absorção de conteúdo. Refiro-me ao modelo de conteúdo: unidirecional e dialógico.
O unidirecional é aquele que tem nos cientistas a fonte mais formal de geração de conhecimento [1]. Geralmente, este modelo está relacionado com pesquisas de ponta, não facilmente observadas por pessoas no cotidiano. Outros atores sociais não possuem destaque neste modelo conceitual. O objetivo de difundir seu conhecimento é linear, informando agentes que raramente podem contribuir com aquele campo de estudo diretamente.
Por esta perspectiva, eu considero estes trabalhos como verticalizados por promoverem a difusão do conhecimento “de cima para baixo”, ou seja, de instituições de ponta à sociedade. Nesse ponto de vista, entram aqui pesquisas como mecânica quântica, registros fósseis e geológicos, supersimetria, literatura comparada, etc.
O modelo dialógico é aquele que integra os atores sociais na pesquisa científica, interagindo com o público para trazer conhecimentos diversos, inclusive de marginalizados e esquecidos [1]. Neste formato, a ciência é vista como parte integrante da sociedade e promotora da inclusão social, uma vez que se preocupa em ouvir demandas e carências da população.
A finalidade deste modelo é a criação de uma cultura científica na população, quando os agentes entendem a ciência tanto como fator identitário quanto fomentador de valores, tabus, moralidades e recursos simbólicos. Este modelo é horizontal justamente por colocar as instituições e atores como iguais no processo de criação e divulgação do conhecimento. Entram aqui pesquisas de ciências agrárias, panoramas sociológicos, psicologia evolutiva, engenharias e conhecimentos de humanidades, tais como a cultura alimentar.
Mas qual o melhor modelo para divulgar ciência?
Não podemos afirmar que existe um modelo melhor do que outro. Ambos têm objetivos diferentes e oferecem soluções complementares com relação ao entendimento da população sobre ciência. Tudo dependerá da missão de sua comunicação. Sabendo disso, o grau de entendimento ficará maior. A cultura alimentar como ciência é um ótimo exemplo
Em cultura alimentar, o principal objetivo é soberania e governança. Faz parte de aumentar a consciência da população sobre seu repertório simbólico e atuar coletivamente para expandir suas possibilidades. A difusão científica funciona como um espelho que mostra o que nós, como sociedade, estamos construindo juntos.
O Portal O Joio e o Trigo fez uma reportagem especial sobre o assunto. No artigo, foi explicado que as políticas culturais brasileiras relacionadas com alimentação têm prevalecido com o termo de “gastronomia” [5]. Apesar de ela fazer parte da cultura em alimentação, a gastronomia está mais relacionada com a economia do que com a antropologia de alimentos. Ou seja, está mais relacionado com produtos de mercado do que com a culinária típica da localidade.
Sendo assim, muitas possibilidades culturais ficam abaixo do necessário nas licitações públicas. Quando um edital de evento é aberto para gastronomia, entram aí mais atores sociais do que aqueles que deveriam ser contemplados, inviabilizando aqueles que fazem a cultura típica alimentar de uma certa localidade. Geralmente, os mais contemplados são aqueles que possuem mais capital político ou financeiro, como estabelecimentos gourmetizados ou franqueados.
Como a reportagem indica, essa relutância dos governos em reconhecer a cultura alimentar como base para licitações e editais de alimentação também gera e repercute racismo estrutural [5]. Afinal passa pelo poder público não reconhecer a potencialidade da sociedade civil e a economia criativa que a mesma pode gerar. Pior do que isso, é negar a existência da complexidade simbólica e estrutural dos elementos que formam nosso repertório psicossocial.
Difundir ciência passa também pela crítica político-social e, principalmente, por imaginar cenários melhores do que o atual. Uma sociedade com consciência científica — sendo dialógica e unidirecional juntas — é aquela que entende seu potencial e busca o melhor para sua jornada e das próximas gerações. Afinal sabemos que existem políticos por aí que adorariam nos tirar essa capacidade de imaginar.