Na data de hoje, 4 de agosto, faz um ano do acidente de Beirute, no Líbano, em que ocorreu a detonação de 2.750 toneladas de nitrato de amônio, armazenado inadequadamente num depósito do porto da cidade em decorrência de um incêndio em outros materiais armazenados no mesmo galpão. Trago hoje mais um texto da série que explica a físico-química das explosões, tomando este evento de Beirute como exemplo. No primeiro texto, vimos do ponto de vista físico como que as ondas de choque de uma explosão podem levar a efeitos catastróficos. No segundo texto, identificamos três premissas para que uma reação química possa desenvolver uma explosão: gerar aumento de moléculas de gases, elevar a temperatura e reagir rapidamente. Agora vamos entender as características químicas que fazem certas substâncias, como o nitrato de amônio, atenderem tais premissas.
O nitrato de amônio tem sido largamente utilizado como insumo agrícola, pois fornece ao solo nitrogênio já em forma de nitrato (NO3–). Essa condição é necessária para a absorção do N pelas plantas, em especial leguminosas, uma vez que a disponibilização de nitrato pelo ciclo natural no nitrogênio pode não atender à demanda das produções agrícolas de larga escala (para entender mais sobre o nitrogênio sob a forma de nitrato e a química do solo em outros textos daqui do Portal Deviante, acesse “Crônicas de Nitrogênio e Fogo: Guerra do nitroênio mineral” e “O que você sabe sobre química do solo – parte 3“)
Mas, por que substâncias que têm na sua molécula o grupo funcional “nitro” (o pedacinho –NO2), como o nitrato de amônio e outros compostos nitrados, tendem a causar reações explosivas?
1. O aumento de moléculas de gases
Os compostos nitrados podem sofrer decomposição, ou seja, pela ação de alguma energia inicial (que pode ser uma temperatura de ignição, ou compressão, como numa espoleta), a molécula se quebra e os seus átomos se rearranjam em moléculas menores. Muitas das novas moléculas geradas como produto dessas reações são gases, que ocupam volumes consideravelmente maiores em relação às substâncias iniciais (sólidas ou líquidas). Veja os exemplos abaixo:
Na detonação de nitrato de amônio no Porto de Beirute, a nuvem vermelha que sobe após a bola de explosão indica a presença de óxidos de nitrogênio resultantes da decomposição do nitrato de amônio.
2. Temperatura alta
As decomposições dos compostos nitrados tendem a ser altamente exotérmicas, ou seja, liberam energia térmica durante a reação. Conforme explicado no texto anterior, a elevação da temperatura, associada à geração de gases na reação, potencializa o aumento de volume. No caso do nitrato de amônio, 1 mol do sólido ocupa 46 ml, enquanto os gases resultantes da explosão desta quantidade atingem mais de 940°C e ocupam um volume de aproximadamente 350 litros, ou seja, cerca de 7.500 vezes maior. Se no entorno da reação existir carbono (que pode ser proveniente de combustíveis como papel, madeira, substâncias inflamáveis, etc.), ele acaba reagindo com os produtos da decomposição do nitrato de amônio, de modo que a temperatura resultante ultrapassa 1.000°C. Dessa forma, ainda mais gás é gerado, o que faz o volume ocupado pelas substâncias se multiplicar por mais de 14.000 vezes em relação aos sólidos iniciais.
Perceba que a primeira etapa da decomposição é representada por uma curva ascendente no gráfico, o que significa que essa etapa inicial (necessária para dar princípio ao restante da reação) é endotérmica, ou seja, que ela precisa receber uma energia externa para acontecer. Isso explica porque em condições normais de armazenamento e aplicação (à temperatura ambiente) o nitrato de amônio é estável, permitindo sua larga utilização em escala mundial sem que sejam registrados acidentes anualmente. Isso explica também porque este lote de 2.750 toneladas de nitrato de amônio ficou sem explodir por seis anos e só foi gerar uma catástrofe quando houve uma fonte de ignição indevida próximo ao seu armazenamento descuidado.
Esta energia inicial necessária para iniciar uma reação é chamada de energia de ativação. Imagine a seguinte analogia: a reação de decomposição do nitrato de amônio é como uma grande pedra descendo descontroladamente por uma montanha. No pé desta montanha existe um muro reforçado, mas a energia liberada pela pedra descendo rolando ao terminar a sua descida é suficiente para detonar o muro.
No entanto, a pedra só vai iniciar sua descida se ela já estiver no pico desta montanha, ou pelo menos um pouco mais adiante. Fato é que o nitrato de amônio em temperatura ambiente é como esta pedra repousando antes do pico da montanha.
Ou seja, é necessária uma energia inicial para levar a pedra do seu ponto de repouso até o pico da montanha para, a partir daí, ela descer descontroladamente em direção ao muro. Quimicamente, esta energia inicial (a subida até o pico) representa a energia de ativação, que pode ser um aquecimento iniciado por motivo externo, como, por exemplo, um incêndio em produto combustível armazenado inadequadamente junto do nitrato de amônio.
Para o nitrato de amônio, esta primeira rampa é relativamente alta, de modo que sua decomposição perigosa apenas se inicia com um evento bastante energético, como um incêndio. Mas para dar início à sequência de decomposição descontrolada de outros compostos nitrados, como TNT, nitroglicerina ou nitrocelulose, essa primeira rampa é bem menor, de modo que pequenos aquecimentos ou pressões já podem iniciar a reação.
3. Reação rápida
Como as reações envolvidas na decomposição dos compostos nitrados dependem apenas da própria molécula da substância, essas reações são mais rápidas do que outros tipos de reações em que diferentes reagentes precisam se aproximar entre si.
Por exemplo, para reações de combustão, é necessário o contato do combustível com o oxigênio. As moléculas de oxigênio “encostadas” na superfície vão se consumindo, enquanto mais moléculas de oxigênio precisam se aproximar para continuar a combustão. Essa captura de oxigênio e a reposição do oxigênio reagido não são tão rápidas, como podemos observar na queima de uma poça de líquido inflamável ou de um bloco sólido de carvão ou madeira.
Aquele aumento de volume na ordem de dezenas de milhares de vezes não seria tão impactante se a velocidade da reação fosse baixa, pois haveria tempo suficiente para esse volume empurrar o ar sem causar a pressão típica das explosões.
Através da recordação dessa tragédia que completa um ano hoje, esta sequência de textos foi uma oportunidade para entendermos melhor a respeito dos riscos de substâncias químicas (riscos estes que por muitas vezes são negligenciados), e também mais uma oportunidade do Portal Deviante para explicar conceitos científicos de forma acessível a partir de eventos reais que infelizmente ocorrem e que, se forem entendidos por todos, podem ser evitados no futuro.
REFERÊNCIAS:
BURRESON, Jay; LE COUTEUR, Penny; Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Os Botões de Napoleão: as 17 moléculas que mudaram a história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
WILLEY, Ronald J. The nature of ammonium nitrate decomposition and explosions. Proc Safety Prog. 2020; e12214. Disponível aqui
OXLEY, Jimmie Snapshot of ammonium nitrate: History and use. Proc Safety Prog. 2020; e12204. Disponível aqui
BENNET, Dalton; BLANCO, Adrian; KELLY, Meg; LEE, Joyce Sohyun; MIRZA, Atthar. Video analysis of Beirut explosion reveals its power, even at great distances. The Washington Post, 2020. Disponível aqui
HUBBARD, Ben; ABI-HABIB, Maria; EL-NAGGAR, Mona; McCANN, Allison; SINGHVI, Anjali; GLANZ, James; WHITE, Jeremy. How a Massive Bomb Came Together in Beirut’s Port. The Washington Post, 2020. Disponível aqui