A ciência não é apolítica

Nos últimos anos, o tópico da integridade científica foi colocado em relevância no debate público por vários motivos. Dois dos maiores propulsores do debate são a mudança climática e a pandemia do vírus SARS-CoV-2 (causador da Covid-19).

No passado, políticas de eugenia foram promovidas com base em produção científica. Alguns argumentam que a ciência perdeu sua integridade em prol da adoção de ideologias políticas, porém, veremos nesse texto que a noção de ciência apolítica não faz sentido, e que a realidade atua em um extremo oposto, em que não devemos apenas estar cientes do viés científico, mas também temos de nos questionar com frequência a qual viés os resultados obtidos servem.

A ciência tem viés por conta do simples fato de não existir em um vácuo: é feita por humanos, para humanos. É financiada por agências com interesses que, mesmo que idealmente não interfiram no resultado, são políticos pelo simples fato de serem escolhidos no lugar de outras pesquisas possíveis.

E por vezes encontramos o cenário contrário ao ideal, em uma situação em que os métodos e resultados são ativamente manipulados em favor dos interesses dos contratantes: o que vou chamar de “contraciência” surge de forma combativa a algum consenso científico.

Não confundir contraciência com estudos válidos que buscam testar a teoria vigente, enquanto o segundo respeita o método científico, o primeiro é muito mais aberto com relação ao que é aceito como evidências quando favorece o resultado esperado e tende a ignorar categoricamente explicações e evidências contrárias.

Esse texto discutirá um dos maiores exemplos da cooptação da ciência: os movimentos da indústria do tabaco nas últimas décadas.

As ações desastrosas tomadas pela indústria do tabaco para mitigar e combater os resultados da pesquisa científica revisada por pares marcam a inauguração de muitas das táticas que outras indústrias e agentes adotaram recentemente, com o intuito de influenciar a investigação científica e o bem-estar público. Com certeza, o leitor será capaz de traçar alguns paralelos com outros movimentos que vemos na modernidade.

 

Nos anos 50, foi provado experimentalmente que fumar causa câncer

Em 1952, um estudo ligando diretamente o consumo de cigarro ao câncer de pulmão foi publicado, assinado pelo Dr. Richard Doll. A pesquisa é considerada de extrema importância para a compreensão das consequências do fumo e do comportamento do câncer em si.

Depois da publicação, a indústria do fumo em todo os EUA, que já estava preocupada com resultados de outras pesquisas recentes, passou a entrar, de fato, em modo de crise. Apesar de propor uma relação direta, o estudo não conseguia ainda provar acima de qualquer dúvida os efeitos carcinogênicos do cigarro. Ainda.

Isso mudou ao final de 1953, quando o grupo de pesquisa do Sloan-Kettering Institute, liderado pelo Dr. Ernst Wynder, provou experimentalmente a relação entre o fumo e o câncer ao expor a pele de ratos ao material retirado de cigarros, causando diversos cânceres de pele nos pobres animais.

A partir deste momento, a crise estava completamente estabelecida, e cada vez mais estudos apareciam corroborando que o fumo leva ao desenvolvimento do câncer bem como outras doenças respiratórias e cardíacas, levando o usuário à morte.

Em meio a essa colossal crise interna, a indústria do tabaco lançou uma estratégia até então sem precedentes na história dos negócios Norte Americanos: o plano era erodir, confundir e condenar a própria ciência, que ameaçava acabar com o seu produto de extrema popularidade e exclusividade.

Propaganda em uma revista americana por volta de 1950 buscava ligar a prática da medicina com o fumo. A imagem associa médicos a cigarros e o texto central anuncia “Foi perguntado a todo médico de consultório: ‘Qual cigarro você fuma?'” Fonte: Lawrence, F. (2019). Big Tobacco, war and politics. In Nature (Vol. 574, Issue 7777, pp. 172–173). Springer Science and Business Media LLC.

 

Guerra contra a verdade

Nas décadas anteriores, o marketing das indústrias tabagistas já havia desenvolvido táticas avançadas de engenharia social, algo que Edward Bernays (pesquisador em relações públicas) havia chamado de “Engenharia de consentimento”. Segundo essa teoria, o mercado poderia ser manipulado por meio das relações públicas de forma a favorecer um produto em particular. Neste caso, tratava-se do cigarro.

Utilizando desses preceitos, a indústria do cigarro, unificada como o Comitê de Pesquisa da Indústria do Tabaco (Tobacco Industry Research Committee — TIRC), fundado em 1953, movimentou-se agressivamente rumo a produção de conhecimento científico, de forma alguma com o objetivo de pesquisa e desenvolvimento, mas com o intuito de desfazer o que já se conhecia: o fato que o consumo de cigarros era causador de doenças extremamente letais.

Devemos apresentar um personagem extremamente importante para essa história, John W. Hill, então presidente de uma das maiores firmas de relações públicas dos Estados Unidos, Hill & Knowlton. Hill foi contratado pelas 5 maiores empresas do ramo para lidar com a gestão da crise.

A estratégia adotada por Hill foi a seguinte, resumidamente:

  • Hill entendia que simplesmente negar os fatos científicos seria ineficiente a longo prazo. O objetivo, então, foi de controlar o desenvolvimento científico ao invés de negar ele. Hill fez com que as grandes empresas do tabaco soassem ao público como grandes apoiadores da ciência;
  • As companhias deveriam adotar um discurso moderno e sofisticado: elas deveriam exigir mais ciência, não menos;
  • Criação do Comitê da indústria (TIRC) — A relação entre fumo e a pesquisa envolveria a indústria como um todo, não apenas algumas empresas, fortalecendo a ideia de unidade;
  • Concentrar recursos na ideia de que não há consenso e toda a questão estava aberta para discussões;
  • Usar do controle praticado historicamente nos veículos de mídia para manipular a pesquisa, os debates e seus resultados. Era de extrema importância encontrar os cientistas céticos com os resultados das pesquisas e ampliar suas vozes públicas (na maior parte, esses próprios cientistas se mostraram consumidores do produto), principalmente aqueles que apresentavam alguma teoria alternativa para a causa do câncer;
  • Tornar as universidades e pesquisadores dependentes do bem-estar da indústria — Hill percebeu que financiar pesquisas por meio de associações indiretas (como o Fundo Nacional de Pesquisa da Saúde) teria pouco sucesso na mudança da percepção pública. Ao invés disso, oferecer fundos diretamente aos cientistas vinculados às universidades resultaria em muito mais apoio, formando uma clara relação de dependência. Adicionalmente, era extremamente benéfico ter as universidades como “parceiras” da indústria do tabaco em momentos de crise.

Fato curioso: Aqueles que gostam do campo da matemática podem já ter tido algum contato com Darrell Huff, autor de um dos livros mais populares dentro da divulgação científica da estatística: Como Mentir Com Estatística (1954). O livro era uma demonstração das formas com que políticos e a mídia utilizavam da manipulação de dados estatísticos para alterar a percepção da população sobre diversos temas.

A ironia da situação é que Huff (que era fumante e defensor do hábito do tabagismo) foi financiado pela indústria do tabaco para escrever um livro chamado “Como Mentir Com Estatísticas de Fumo”, o livro era, posto diretamente, propaganda pró-tabaco. Por conta das críticas recebidas na época, a obra nunca foi publicada. Mas parte dos capítulos escritos foram liberados nas décadas seguintes.

Foi dessa forma que a indústria do tabaco foi capaz de manter-se relevante e gerar controvérsia científica até os anos 70. A ideia de que a questão está aberta para a discussão é muito eficiente pois, enquanto se pode gritar “Mas isso está aberto para o debate!”, é possível combater eficientemente esforços regulatórios.

Mas ceticismo não significa que não há consenso, com o passar dos anos, a sustentação do debate deixou de ser tática e passou a se tornar necessária para a manutenção da própria indústria. Estima-se que somente o TIRC tenha gastado cerca de 300 milhões de dólares em seus esforços entre 1954 e 1997.

Nas décadas seguintes, com fortes campanhas de ativistas que buscavam tornar o hábito de fumar socialmente reprovável, unidas a esforços de pesquisadores e agências de saúde de todo o mundo, os resultados catastróficos do consumo do cigarro foram finalmente reconhecidos. Mas, obviamente, as consequências das estratégias adotadas nesse período são sentidas até hoje.

 

Consequências

Em 1961, quase uma década depois do início das ações tomadas pela indústria do tabaco, Hill & Knowlton celebraram os resultados extremamente positivos. O número de cigarros vendidos anualmente havia subido de 369 bilhões em 1954, o primeiro ano completo em serviço da indústria, para 448 bilhões em 1961. O consumo per capita atingiu seu recorde, de $3344 ao ano em 1954 para $4025 em 1961. O consumo per capita só caiu aos valores anteriores aos esforços de Hill em meados de 1980.

Consumo per capita de cigarro anualmente (1900 – 2012). Descrição: gráfico demonstrando a variação no consumo, conforme descrito acima. Fonte: National Center for Biotechnology Information 

A Organização Mundial da Saúde estima que, até hoje, cerca de 8 milhões de pessoas morram por ano em decorrência do fumo, imaginam-se as consequências catastróficas que a contraciência produzida na época tiveram e têm no presente. Aliás, depois de terem perdido o embate contra as evidências de câncer, a indústria do cigarro continuou operando contra o consenso científico de outras formas, somente respondendo financeiramente por seus crimes em 1998, em um julgamento histórico que resultou nas maiores empresas do tabaco condenadas a pagamento anual perpétuo. A soma dos primeiros 25 anos chegou a $208 bilhões.

O recente crescimento do número de mortes causadas por tabaco e a falha recorrente das estratégias contra o vaping mostram, ademais, que a prevenção do fumo está longe de sair do debate público. Aliás, quanto ao vaping, a indústria do fumo está ativamente aplicando muitas das mesmas estratégias expostas nesse texto.

Além disso, as táticas, até então inéditas, empregadas para contornar a evidência científica na época, foram reutilizadas nas décadas seguintes para atrasar a tomada de ações contra questões importantíssimas como o os danos na camada de ozônio, o movimento antivacina e, como já discuti em outro texto, o negacionismo climático.  E, mesmo após mais de meio século lidando com essas estratégias, a comunidade científica ainda apresenta dificuldades no combate categórico da contraciência.

Reitero a mensagem do início, a ciência não é apolítica. Ela pode ser cooptada e manipulada em prol de interesses nefastos, e é por isso que devemos sempre nos atentar à qual propósito a pesquisa científica trabalha. A boa notícia é que até hoje fomos capazes de contornar as situações as tentativas de descrédito: é cada vez mais difícil negar o aquecimento global, a eficiência das vacinas, a diferença entre gênero e sexo e, obviamente, que fumar causa câncer.

A razão vencerá a barbárie, devemos lutar para que isso ocorra antes de ser tarde demais. 

Utilidade Pública: enquanto estava finalizando a pesquisa para esse texto, descobri que o SUS oferece tratamento gratuito para aqueles que buscam parar com o vício em tabagismo. O Programa Nacional de Controle do Tabagismo é parte do INCA (Instituto Nacional de Câncer). Clicando aqui você encontra os números de contato para obter informações sobre os locais que oferecem o tratamento em seu município. E clicando aqui você encontra uma página com dicas para parar de fumar sozinho, caso preferir.

Referências

Answer In Progress. Youtube. Vaping: A lesson in irony. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MFKg1fS6fd4

Brandt AM. Inventing conflicts of interest: a history of tobacco industry tactics. Am J Public Health. 2012 Jan;102(1):63-71. doi: 10.2105/AJPH.2011.300292. Epub 2011 Nov 28. PMID: 22095331; PMCID: PMC3490543.

LAWRENCE, Felicity. Nature. Big Tobacco, war and politics. 2019. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-019-02991-w.

National Center for Chronic Disease Prevention and Health Promotion (US) Office on Smoking and Health. The Health Consequences of Smoking—50 Years of Progress: A Report of the Surgeon General. Atlanta (GA): Centers for Disease Control and Prevention (US); 2014. 2, Fifty Years of Change 1964–2014. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK294310/

NEW YORK TIMES. ’53 Experiment Found Cancer Link. Disponível em: https://www.nytimes.com/1994/06/16/us/53-experiment-found-cancerlink.html#:~:text=Ernst%20Wynder%20and%20his%20colleagues,they%20had%20been%20too%20brief

REINHART, Alex; Carnegie Mellon University. The history of “How to Lie with Smoking Statistics”. Disponível em: https://www.refsmmat.com/articles/smoking-statistics.html.

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WIKIPEDIA. Darrell Huff. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Darrell_Huff.

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