Pense e responda rapidamente: em poucas palavras, qual é a melhor definição de “música” para você?
Eu me arriscaria a dizer com bastante segurança que, de alguma forma, a sua resposta passou pela palavra “som”. E de maneira alguma isso estaria errado. É tremendamente óbvio que nossas capacidades de criar e apreciar música dependem de nossas habilidades de, em algum nível, manipular e decodificar as ondas mecânicas que viajam pelo ar. No entanto, é provável que a atenção excessiva ao som nos impeça de enxergar a relação talvez até mais íntima e simbiótica que a música guarda com um outro parâmetro físico. O tempo.
Imagine-se em um museu, diante de um quadro qualquer. A quantidade de tempo que será concedida à apreciação daquela obra específica estará condicionada a uma série de fatores pessoais. Sua profissão, gênero, idade, origem sociocultural, conhecimento sobre o autor, e até mesmo a quantidade de horas dormidas na noite anterior. Combinados, todos esses fatores poderão lhe levar a gastar horas na exploração daquela obra, ou apenas meros segundos.
Agora, que tal trocarmos o museu por uma sala de concertos, e o quadro, digamos, por uma execução completa da 5ª Sinfonia de Beethoven? Nessa situação, eu diria que, em média, você se exporia à obra em questão por cerca de 35 minutos. E mais. Todos os presentes, independentemente da bagagem cultural de cada um, teriam exatamente a mesma quantidade de minutos e segundos para ouvir, absorver e apreciar a Sinfonia. A música, qualquer que seja, só pode existir em função do tempo.
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Aqui, devo ser honesto, e admitir que o aproveitamento desse tempo estaria, sim, condicionado à bagagem cultural prévia de cada ouvinte. Dessa forma, os mesmos 35 minutos de duração da obra poderiam ter valores radicalmente diferentes para cada um dos presentes. É verdade também que uma apreciação aprofundada da obra musical dependeria de inescapáveis repetições de sua audição. De forma que se torna inteiramente possível gastar cinco ou dez horas para a apreciação de uma obra de 35 minutos. As mesmas cinco ou dez horas que se poderia gastar com um quadro ou uma escultura.
No entanto, o ponto central aqui é que somos obrigados a medir a obra musical em minutos e segundos. Isso porque, diferentemente de uma obra puramente visual, que tem todos os seus elementos e detalhes coexistindo de forma estática, a música se apoia inteiramente sobre sucessões de eventos sonoros, cada qual com seu momento certo para ocorrer e para deixar de ocorrer. Sem a capacidade humana de organizar a sua disposição temporal, não haveria som no universo capaz de ser compreendido como música.
Muito em função disso, a história da música é também a história do desenvolvimento de diferentes sistemas para manipulação do som em função do tempo. Seja nas sinfonias de Beethoven, nas batucadas do Candomblé, nos cantos guturais da Mongólia, ou nas improvisações frenéticas do Jazz norte-americano. Em todos esses microcosmos musicais, há considerações específicas sobre como o tempo deve ser tratado. Sobre como definir e correlacionar a duração de cada evento sonoro individual.
A esses conjuntos de diretrizes, e às linguagens musicais que deles derivam, damos o nome de ritmos. Sua importância é tamanha que frequentemente são utilizados para traçar os limites entre gêneros musicais distintos. Quantas vezes não perguntamos coisas como “qual é o seu ritmo favorito?”, buscando obter respostas como “samba”, “rock”, “funk” ou “forró”? Esses são nomes de gêneros musicais, que carregam consigo todo um contexto cultural. E ainda assim, tendemos a reduzir as diferenças entre eles aos ritmos.
Simplório ou não, esse é um indício gritante do quanto a manipulação do tempo tem ascendência sobre nossas experiências musicais.
O curioso é que, mesmo se nos ativermos ao universo dos sons, descobriremos que o tempo tem papéis fundamentais em sua construção e em nossas capacidades de diferenciá-los. Considere, por exemplo, uma simples escala musical tocada ao piano.
Independentementemente de conhecimento prévio, somos, em geral, capazes de compreender que há diferenças importantes entre cada um dos sons consecutivos; diferenças fortes o bastante para que se atribua nomes distintos a eles. Dó, Ré, Mi, Fá… Todos tocados na mesma intensidade, em um mesmo instrumento. E diferenciados entre si fundamentalmente pelas frequências que descrevem conforme viajam pelo ar.
Frequência, lembremo-nos, é a quantidade de vezes que determinado ciclo se repete ao longo de uma mesma unidade de tempo.
O tempo, então, além de delimitar o tamanho de cada ato musical e de reger correlações entre eventos sonoros, está impresso na base da identidade de cada som. A música, em contrapartida, pode ser percebida como o próprio tempo em movimento.
Tendo tudo isso em mente, coloque alguma música de sua preferência para tocar. Pouco importa o gênero, a época ou como você vai escutar. Dance, reflita, ou chore, conforme lhe parecer mais adequado. Mas tente se deixar absorver ao máximo, e, ao final, se pergunte: como o tempo se comportou enquanto aquela música esteve presente?