Aquela manhã foi diferente. Marcos sempre acordava solitário, em silêncio para não incomodar sua mulher. Lavava o rosto, voltava para o quarto, vestia sua roupa. Tudo mecanicamente. Olhou para a mulher que ressonava na cama e terminou de calçar os sapatos. Encostando a ponta do indicador nos lábios, endereçou-lhe um beijo e saiu do quarto.
Antes de se dirigir à sala do pequeno apartamento e sair, entreabriu a porta do quarto do filho. O garoto dormia preguiçosamente entre lençóis em total desordem. Deixou os lábios revelarem um pequeno sorriso e recuou, imaginando os sonhos que se passavam na mente infantil do garoto.
Absorto nesses pensamentos, abriu a porta da sala com cuidado e saiu. Eram seis horas da manhã. Desceu as escadas e logo ganhou as avenidas do centro da cidade.
Considerava-se um homem de sorte, pois detestava o transporte público, com seu desconforto e horários imprevisíveis e, como morava no centro, podia ir a pé para o trabalho, numa revigorante caminhada por ruas arborizadas. Para quebrar a monotonia, costumava fazer caminhos diferentes ao longo da semana. Das três opções que tinha, sua preferida era a rua que passava bem próximo de um denso arvoredo formado por eucaliptos, numa área residencial no centro da cidade. Ali, costumava parar alguns minutos para observar as aranhas que faziam grandes teias entre os galhos das árvores. Ficava mesmo admirado com o tamanho que algumas delas atingiam. Chegava tão perto que podia olhar em seus olhos. Aqueles oito sinistros olhos causavam-lhe uma estranha atração. Não tinha medo de ser picado, pois parecia que entre ele e aqueles animais ocorria uma espécie de comunicação silenciosa. Um tipo de telepatia. Às vezes acreditava que as aranhas queriam lhe dizer algo. Óbvio, para ele, que isso era apenas viagem da sua cabeça.
Essa aproximação causava muita estranheza nas pessoas que costumavam caminhar por ali nesse horário. O fato de haver um homem, de sapato e paletó, embrenhado no mato rasteiro, tão próximo ao emaranhado de teias, não era uma coisa tão comum. Alguns achavam que ele era maluco, outros, que era biólogo ou algum outro tipo de cientista. O fato é que as pessoas já o conheciam, assim como ele já reconhecia cada uma delas, de ver passar. E foi por esse caminho, o dos eucaliptos, que ele resolveu seguir naquela manhã diferente.
Ao começar a subir a rua que daria no arvoredo, Marcos notou que algumas daquelas pessoas que encontrava quase todos os dias passavam por ele apressadas e com uma expressão de pavor no rosto. Quando viu se aproximar, com passos rápidos e aparência tensa, uma senhora, que era uma das poucas que tinham o costume de lhe dar bom dia, resolveu indagar o porquê daquele corre-corre logo de manhã cedo. Algum acidente? Talvez um assalto? Mas ao ouvir a pergunta, a mulher simplesmente olhou para ele, com um olhar vidrado e aterrorizado, e balbuciou uma única palavra: “aranha”…
Sem entender nada do que estava acontecendo, Marcos passou a conjecturar: “Será que alguma das aranhas do arvoredo havia picado alguém?” Pelo que ele sabia, uma picada daquela espécie de aranha não seria letal.
Porém, o que mais o preocupou foi a ideia de que, se acontecesse um incidente desse tipo, provavelmente a população exigiria que a saúde pública exterminasse as aranhas.
Pôs-se a caminhar, também apressado, mas em sentido contrário ao das pessoas assustadas. Seguia rápido na direção do arvoredo, preocupado com as aranhas. Ao ver de longe os primeiros eucaliptos, observou também uma multidão que se aglomerava na rua próxima. Chegando mais perto pôde ver, entre as duas maiores árvores, uma imensa teia, com fios muito grossos, mais parecidos com cabos de aço e, bem no centro da teia, uma aranha de aparência assustadora com cerca de dois metros de comprimento. Sua parte frontal exibia ameaçadoras quelíceras vermelhas além de olhos negros que reluziam ao sol brando da manhã.
Tomado por um misto de curiosidade e fascínio, Marcos aproximou-se do aglomerado de pessoas. Perguntou a um rapaz, que olhava fixamente o animal, como aquela aranha tinha aparecido ali. O rapaz explicou que, durante a madrugada, segundo alguns moradores próximos, a aranha gigante simplesmente saiu do meio das folhagens, subiu no tronco de uma árvore e começou a tecer a gigantesca teia. O corpo de bombeiros já havia sido chamado, bem como a equipe de zoólogos e veterinários da saúde pública para documentar o fato e decidir o que fazer.
Essa informação foi perturbadora para ele. Por que mexeriam com a pobre aranha que estava quieta em sua teia e aparentemente não causaria mal a ninguém? Está certo que uma aranha daquele porte é um fato pra lá de inusitado, mas não poderiam simplesmente fotografá-la e deixá-la em paz?
“Provavelmente vão capturar a aranha e dissecá-la em algum laboratório sombrio!” – Marcos pensou.
Naquele momento, Marcos decidiu que ia defender aquele fantástico ser! Afinal, ele tinha uma relação de interesse e respeito por aqueles animais. E foi com essa ideia na cabeça que, ao ouvir as primeiras sirenes de bombeiro, ele varou a multidão e atravessou a pequena cerca que separava a rua do arvoredo. A comoção foi geral. As pessoas gritavam para que ele saísse de lá, pois poderia ser atacado pela aranha. Alguns o chamavam de maluco, outros o reconheceram como o “cara das aranhas”. A gritaria das pessoas, assim como o som das sirenes, aumentava conforme Marcos ia avançando.
Num instante, porém, ele percebeu que o barulho da multidão parecia ficar cada vez mais longe, como se sua atenção estivesse sendo totalmente desviada para a aranha à sua frente que, assim que o viu pulando a cerca, veio rapidamente para a extremidade da teia, como se estivesse para capturar uma presa. Sem que Marcos percebesse, o animal havia chegado bem perto, sendo possível olhar fixamente seus olhos, da mesma forma que costumava olhar os olhos das outras aranhas que sempre encontrava ali. E como acontecia nas outras ocasiões, aqueles olhos, agora enormes, pareciam querer lhe dizer algo… Só que dessa vez ele era capaz de entender!
De alguma forma, a aranha conseguia se comunicar diretamente com a sua mente, sem fazer qualquer movimento, apenas fixando os olhos nos seus.
“Você parece ser um dos poucos capazes de nos entender…” foi a mensagem que chegou ao seu pensamento.
“Eu estou aqui somente para lhes mostrar que não somos simples animais irracionais. Vocês jamais serão capazes de compreender os mecanismos que diferenciam uma espécie de outra, mas eu tenho o dever de te mostrar algo muito além do que qualquer ser humano jamais conheceu!”
Olhando fixamente para a aranha, ele percebeu quando ela levantou as ameaçadoras quelíceras em sua direção e outra mensagem chegou a sua mente: “Não se preocupe. Você não sentirá dor alguma. Talvez um pouco de frio.”
E para horror da multidão que assistia a tudo, a gigantesca aranha tocou o seu ombro esquerdo com as pontas das quelíceras. Realmente, ele não sentiu dor, só um formigamento que começou no ombro e se irradiava para todo o corpo. Sentiu também como se estivesse sendo arrebatado no ar e percebeu que a aranha o havia envolvido em suas patas, levando-o para o centro da teia, e enrolava-o lentamente e cuidadosamente em um novelo.
Logo abaixo, a multidão gritava desesperada, mas Marcos não ouvia mais do que sons abafados e enxergava apenas cores difusas. As cores das roupas das pessoas misturavam-se com o brilho das luzes dos carros de bombeiro. Seu pensamento parecia embotado, mas não sentia medo. Sentia-se seguro naquele casulo como jamais havia se sentido em toda a sua vida. Junto com a sensação de segurança, veio também uma indescritível paz. Como se, a partir daquele instante, ele estivesse em outra realidade.
FIM DA PARTE UM
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