Talvez seu primeiro contato com Loki tenha sido através das produções do Universo Marvel. Esse personagem, no entanto, existe há um pouquinho mais de tempo que o dos quadrinhos: Ele tem origem na mitologia nórdica.
Mitologia germânica, também chamada de mitologia nórdica, mitologia viquingue ou mitologia escandinava, é o conjunto de lendas pré-cristãs dos povos escandinavos, especialmente durante a Era Viking, cujo conhecimento chegou aos nossos dias principalmente através das Edas islandesas do século XIII. A maioria das fontes escritas vieram dos povos escandinavos que se estabeleceram na Islândia.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
De acordo com a Edda em prosa, (Skáldskaparmál capítulo 35), Loki fez uma aposta com o anão Brokkr e o preço a pagar, caso perdesse a aposta, seria a sua cabeça. Loki perdeu essa aposta e eventualmente os anões vieram coletar o pagamento. É evidente que Loki não estava disposto a entregar sua cabeça… e, como é característico de Loki, o deus da trapaça e da travessura, ele tentou passar a perna nos anões! Se formos olhar isoladamente por esse episódio, até que o personagem do universo Marvel não é tão diferente.
Quando os anões chegaram, Loki deixou claro que estava disposto a seguir o que havia sido acordado, ou seja, que eles estavam no direito de levar sua cabeça como pagamento. No entanto, eles não tinham direito algum de levar nenhuma parte de seu pescoço: A cabeça sim, o pescoço não! Os interessados se reuniram e começaram a discutir sobre o dilema. Algumas áreas do corpo eram obviamente parte da cabeça, enquanto que outras eram claramente parte do pescoço. Não havia discordância quanto a isso. No entanto, nenhuma parte conseguia decidir onde exatamente o pescoço terminava e a cabeça começava. No final das contas, como não foi possível definir exatamente onde um terminava e o outro começava, não puderam coletar o pagamento, isto é, a cabeça de Loki. Ainda assim, não ficou barato para ele: costuraram os lábios de Loki, como punição por ter conseguido se safar de pagar sua dívida com um jogo de palavras.
A aposta de Loki é uma forma de falácia lógica (ou falácia informal) que consiste numa insistência irracional de que um conceito não pode ser definido, e, portanto, não pode ser discutido.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Houve um episódio semelhante no The Merchant of Venice, obra do autor inglês William Shakespeare, publicada em português como O Mercador de Veneza. Em resumo, uma dívida em particular havia sido feita e a punição caso não fosse paga dentro do prazo seria de cerca de meio quilo de carne retirada diretamente do devedor! Eventualmente a dívida não foi paga no prazo determinado e o meio quilo de carne foi cobrado. No último instante, o devedor conseguiu se safar quando alguém que o defendia deixou claro que apenas meio quilo de carne poderia ser retirado de seu corpo. Nada a mais, nada a menos. Ou seja, o “agiota” não tinha o direito de tirar sequer uma gota de sangue! Se mesmo que uma gota de sangue fosse derramada, o agiota seria punido pelo ato como regiam as leis de Veneza, que nesse caso eram bem severas. No final das contas, o agiota teve que receber o pagamento em dinheiro, sem júros, e não pôde punir o devedor como desejava.
Embora esses episódios descrevam situações fictícias e em tempos distantes, o raciocínio falacioso nos segue até os dias de hoje. Não é incomum que alguém tente utilizar da impossibilidade de termos uma definição perfeita de algo para inviabilizar o discurso ou qualquer tentativa de solucionar um problema, preservando o status quo. Esse tipo de postura costuma vir atrelada a um grande equívoco sobre as ciências exatas ou qualquer metodologia quantitativa: o de que, nessa área ou metodologias, tudo é preto no branco, 0 ou 1, determinístico, perfeitamente previsível, e que o mundo real não é assim. E o mundo real não sendo assim, as ciências exatas e as metodologias quantitativas não são adequadas para se estudar o fenômeno que está sendo abordado. Antes de prosseguirmos com exemplos da “Aposta de Loki” nos dias de hoje, vou abrir uma sub-seção parênteses para explicar melhor o porquê essa insistência em definir ciências exatas, ou metodologias quantitativas, desse modo é um equívoco.
Exatas significa certezas absolutas e previsões perfeitas?
A realidade costuma ser complexa e em muitos casos ultrapassa o que empiricamente conseguimos perceber, isto é, através de nossos sentidos, como a visão e audição. Inclusive, essa é uma das razões de utilizarmos métodos quantitativos, como quando selecionamos um conjunto de observações para estudar um fenômeno. Em vez de fazer perguntas a todos os brasileiros, nós fazemos perguntas a uma seleção de indivíduos brasileiros. Em vez de medir a altura de todas as pessoas, medimos a altura de algumas delas.
Imagine que gostaríamos de tentar identificar características associadas a atletas de alto rendimento, por exemplo, mas na incapacidade de medir todas as características deles, e do universo que os rodeia, além de fazer essas medições por toda a vida de todos os atletas de alto rendimento que já existiram… Pausa para respirar :-) … Nós acabamos fazendo o seguinte: (1) selecionamos alguns atletas de alto rendimento da atualidade, isto é, uma amostra de indivíduos da nossa população de interesse (todos os atletas de alto rendimento vivos), (2) escolhemos algumas variáveis para medir (3) em um determinado período de tempo, que geralmente compreende a duração da fase de coleta de dados do estudo. Na prática, teríamos algo como (1) os atletas de alto rendimento que atuam em Natal, Rio Grande do Norte. Mediríamos características pessoais (como altura e peso), número de premiações, velocidade média em percursos de uma distância X, quantitativos de nutrientes na alimentação, etc, ao longo de um ano.
Alguém poderia tentar impedir a execução do estudo desde o início e sem necessariamente nos submeter a argumentos absurdos. Poderia achar que é necessário mais tempo de observação, mais variáveis e mais indivíduos, e justificar o porquê. Poderia achar que a definição de alto rendimento não está adequada, e provavelmente todos esses questionamentos seriam pertinentes. No entanto, essa discussão poderia seguir para o ridículo, ao se afirmar que o estudo só pode ser feito se todas as centenas de milhões de variáveis forem medidas (a pressão atmosférica em um determinado ponto em Marte no momento de uma competição em Natal, Rio Grande do Norte, por exemplo), e aqui vai o primeiro ponto: Uma resposta R para uma pergunta P, se correta, tem garantido apenas isso, que ela é uma resposta correta para a pergunta P. O que eu quero dizer com isso? Se eu falo que a altura média dos atletas de alto rendimento que estudei é 1.74, isso não é necessariamente uma resposta para a pergunta “Qual a altura média dos atletas de alto rendimento?”. É uma resposta para a pergunta “Qual a altura média dos atletas analisados nesse estudo?”. Em alguns casos, é possível tentar extrapolar os resultados dos dados observados para a população de interesse (todos os atletas de alto rendimento da atualidade) mas isso costuma ocorrer com um intervalo de confiança (algo como 1.74 5cm, isto é, a altura é entre 1.69 e 1.79cm), ou ao menos fica implícito de que iremos obter uma aproximação. E ainda existe uma outra questão: pressupostos. Tudo isso precisa ser levado em consideração, e a resposta do estudo, ainda que correta, é uma resposta para a pergunta dados alguns pressupostos. Não parece nem um pouco com esse papo bobo de 0 ou 1, de certeza absoluta, de resultados exatos, né? Como engenheiro que sou, sempre lembro da piadinha:
João: “Fiz os cálculos e precisamos de 2.787”
Pedro: “Bota 3 que aguenta”
É uma piada, mas relembra que na hora de colocar a mão na massa, as coisas são um pouco diferente. Talvez não exista material com uma determinada propriedade medindo 2.787!
Ainda no assunto de predições, poderíamos ter criado um modelo de predição do preço de apartamentos com base em algumas de suas características. O preço estimado de um determinado conjunto de características que o cliente passou foi de R$ 201.532. Só que na verdade o preço era R$ 200.000. Próximo o suficiente para ser útil em muitos casos, não concorda? O que justifica o uso de métodos quantitativos não é que eles sejam perfeitos, é porque em muitos casos eles nos oferecem melhores resultados do que outras abordagens, intuição ou chute.
O que aparentemente foge da compreensão dessas pessoas é que em muitos casos é possível fazer predições bastante úteis sem necessariamente se observar centenas de variáveis em milhões de indivíduos, ter definições inquestionáveis, medições por anos e mais anos, além de técnicas mega sofisticadas. E sequer precisamos de métodos muito sofisticados! Ainda que possamos derrubar um prédio com uma bomba atômica, também é possível com escavadeira (e outros maquinários) e o serviço fica até melhor!
Isso me lembra o ditado “melhor mal feito, do que não feito”. Em muitos casos, a solução não irá resolver o problema por completo, mas diminuirá seus efeitos negativos. Ninguém espera resolver problemas complexos, e/ou que ocorrem em larga escala, com um estalar de dedos, mas sim através de uma sequência de soluções que podem, de passo em passo, nos levar para um cenário onde o problema apocalíptico se torne um problema pequeno e/ou tolerável.
A área de exatas, ou métodos quantitativos, está longe de ser binária, 0 ou 1, e está longe de ter certezas absolutas. Inclusive, deveria ser evidente a compreensão de que não existem certezas absolutas na prática, e isso não deveria nos impedir de ainda assim tentar resolver problemas ou estudar fenômenos. Gosto de dizer que buscamos diminuir a incerteza, e não aumentar a certeza. Pode parecer a mesma coisa, mas não são.
Definições importam?
Definições são importantíssimas, não me entenda mal! Minha área de pesquisa no doutorado é inferência causal em dados observacionais, ou seja, eu modelo fenômenos da natureza e tento compreender quem são os agentes causadores dos efeitos que observamos. Esse tipo de estudo pode nos levar à formulação de intervenções na realidade, isto é, políticas públicas. Para testar os efeitos de uma intervenção, antes de reproduzí-la em larga escala, é desejável que ela seja uma intervenção bem definida. Precisamos fazer a pergunta correta, isto é, a pergunta que de fato queremos responder, para que as respostas que iremos obter façam sentido. Imagino que tenha ficado evidenciado aqui que não há dúvidas de minha parte de que intervenções bem definidas, e definições no geral, são importantíssimas e precisam ser discutidas e trabalhadas. A crítica da Aposta de Loki não é a definições per se, mas à insistência irracional de se ter uma definição perfeita, caso contrário o assunto não pode ser debatido ou nenhuma solução pode ser cogitada. Vamos aos exemplos na atualidade.
Mamilos Avaliações polêmicas
Recentemente, algumas discussões surgiram no Twitter em torno das avaliações estudantis. Diversos educadores, divulgadores científicos, enfim, muita gente, repetiu o óbvio: suas notas não te definem. Essa repetição foi importante, e segue sendo importante, porque embora seja óbvio que somos mais que nossas notas, esse pensamento de que somos definidos por elas segue aterrorizando muitas pessoas. Alguns debates bastante interessantes seguiram (não só no Twitter) em que vários relatos de professores, e sugestões de melhorias, foram compartilhadas. Várias pessoas sugeriram que as avaliações deveriam ser mais diversificadas, de modo a melhor avaliar alunos com perfis diferentes (as notas seriam distribuídas entre provas escritas, projetos em grupo, apresentações, redações, entre outros). Outros apontaram que questões fora da sala de aula também deveriam ser levadas em conta (um aluno que faltou aulas sem justificativa seria tratado diferente de um aluno que fatou porque trabalha, ou porque esteve doente, ou porque não tinha dinheiro para ir à aula, etc). Discutir essas estratégias, e outras que foram mencionadas, não faz parte do escopo desse texto, mas sim um feedback sobre algo específico que também ocorreu: após algum tempo, surgiram algumas pessoas apontando o que eu classificaria como um exemplo da Aposta de Loki: Deveríamos abolir avaliações por completo, ou que as notas não deveriam ser levadas em consideração de modo algum, para nada. Por quê? Porque não é possível definir o que é uma pessoa ser boa em algo, ou definir o quão bom você é em um determinado conteúdo, com exatidão.
Em um dos diálogos que tive, alguém levantou que existem outras questões que são mais informativas que as notas, e que portanto as notas não devem ser levadas em consideração. Ainda que possam existir variáveis mais informativas, esse raciocínio é falacioso pela seguinte razão: Ainda que essa outra “coisa” explique 20% do sucesso em uma disciplina (explicar no sentido de que minhas predições se tornam 20% melhores sobre seu sucesso na disciplina caso eu saiba que você fez ou não essa “coisa”), e que 20% seja maior que 19% (notas, por exemplo), juntas teríamos 39%. Ou seja, 20 ser maior que 19 não significa que 20 é melhor que 39 (as duas juntas, no caso de serem dois fenômenos independentes). Ainda assim, levar em consideração mais coisas não significa necessariamente que tudo deve ser levado em consideração. Isso é um problema em análises quantitativas, nas quais variáveis com forte correlação são tratadas como independentes, ou quando ruído é adicionado pela análise, em vez de removido, e assim por diante.
Uma prova isolada dificilmente vai atestar perfeitamente o seu conhecimento em uma área, mas alguma noção é possível ter. Dependendo da prova, um 7 ou 8 podem significar a mesma coisa (devido a questões discursivas com algum viés inconsciente por uma determinada forma de escrita pelo corretor, por exemplo) mas dificilmente um 9 significará a mesma coisa que um 1. Talvez você tenha tido um imprevisto e chegou muito tarde na prova, ou passou mal, ou estava em um péssimo momento da sua vida. Tudo isso é perfeitamente possível, ou caiu na prova exatamente a pequena parte do conteúdo que você estudou. Repito: uma prova isolada dificilmente vai atestar adequadamente o seu conhecimento em uma área. Mas e 2 provas? 3? 3 provas feitas em períodos diferentes com intervalos entre elas? E 30? 100? 300? É difícil dizer que eu fiz 100 provas, fui ruim em todas, e domino o assunto. É possível? Sim. É provável? Não. Qual a chance de ser possível, ainda que improvável, e EU, uma pessoa aleatória na população, ser essa pessoa? Menor ainda. Para sistemas de avaliação serem úteis, não precisa acertar com 100% quem são as pessoas mais adequadas para uma determinada oportunidade (ou ser aprovado na disciplina): Se for melhor que escolher ao acaso (rolando um dado), já ajuda. E, claro, não para por aí. Os estudos seguem para melhorarmos as avaliações. Se existe alguém, ou alguma instituição, que insiste em utilizar um determinado sistema de avaliação, ainda que outros melhores tenham surgido, isso é ruim. O que faz sentido fazer? Cobrar para que isso mude, e não em vez disso dizer que todos os sistemas de avaliação devem ser abolidos. E abolidos para substituir pelo o quê? Contratação e aprovação arbitrária por amizade? Aleatoriamente? Não é do interesse de ninguém que isso aconteça, a não ser de algumas pessoas que seriam beneficiadas por isso. Os sistemas de avaliação existem não por serem perfeitos, mas por serem melhores do que as outras opções.
E é importante avaliar pessoas? Sim. Se a disciplina Cálculo II depende do conhecimento de Cálculo I, é importante que os alunos que fazem Cálculo I tenham um mínimo de conhecimento de modo a conseguir se dar bem em Cálculo II. E ainda assim, com inúmeras reprovações, muita gente que passa em Cálculo I falha em Cálculo II. Existe alguém que poderia fazer Cálculo II direto e passar? Claro. De novo, é provável? Não. Não ter avaliação e todos passarem automaticamente é uma solução melhor? Não.
Avaliações não são perfeitas, estão longe de ser, e não há dúvidas quanto a isso: Existem muitos estudos buscando melhorá-las, mas suas imperfeições não são justificativa para abolí-las por completo. Pelo contrário, suas imperfeições são um convite para melhorá-las, e todos são bem vindos a tentar melhorá-las.
Pseudociências e medicamentos
Algumas pseudociências frequentemente trazem algo similar a falácia abordada nesse texto. Já vi pessoas defendendo homeopatia, acupuntura e outras pseudociências, com a desculpa de que não é possível medir seus efeitos ou de que não é possível definir coisas que sequer conhecemos. Em algumas pseudociências questões espirituais são envolvidas, “energias”, “quântica” (ambas com aspas porque não se referem aos conceitos de energia ou de física quântica da ciência), pontos que julgam impossíveis de definir ou de se mensurar. Sobre o efeito de medicamentos, não só é possível, como isso já aconteceu diversas vezes. O grau de incerteza chega a ser tão pequeno que, se existe algum efeito (que ainda assim desafiaria todo o conhecimento acumulado pela ciência) é desprezível.
Sobre intervenções, como medicamentos, existem duas questões que são diferentes: (1) Como X funciona e (2) Se X funciona. Eu não preciso saber como X funciona para saber se X funciona. São duas perguntas importantes, mas desconhecer o modo como X funciona (existem remédios com efeito comprovado pela ciência, cujo funcionamento até hoje é apenas parcialmente conhecido, por exemplo), não me impede de ser capaz de identificar se ele funciona (através de inferência causal em dados observacionais ou estudos randomizados e controlados, por exemplo).
E aí, Loki?
O método não ser perfeito, o mundo não ser binário e as definições não serem perfeitas, não são justificativas para não se estudar algo ou se avaliar algo. Os resultados precisam ser interpretados dentro do escopo em que o estudo foi feito, e precisamos entender métricas e avaliações como elas são: Medidas aproximadas, ao menos melhor que o acaso, para se entender a realidade.