Sempre que o Fencas fala nos Scicast que a gente precisa urgente de saneamento básico no Brasil, você aí, caro leitor, pode achar que é um exagero dele, mas eu tenho uma notícia para te dar: não é. Talvez essa seja uma das maiores dívidas históricas que o Brasil tem com seu povo: ainda não conseguimos resolver essa questão que é básica à sobrevivência humana. Só que o que talvez você ainda não saiba é que, quando finalmente resolvermos essa questão de saneamento universalizado (ou seja, acesso para todas as pessoas), a gente ainda vai ter um problemão para resolver.
Acontece que nossos sistemas de tratamento de água para abastecimento humano e também tratamento de águas residuais (sim, esse é nome em uso) foram pensados para remover toda matéria orgânica, resíduos sólidos que podem por ventura ter ido parar no esgoto e ainda os microrganismos que podem nos causar doenças. No caso do tratamento de águas residuais, toda matéria orgânica é removida, deixando a água limpa, pronta para ser encaminhada ao sistema de tratamento de água, onde receberá os tratamentos necessários para que a água se torne potável e chegue na torneira da sua casa.
Se tiver isso tudo funcionando direitinho e para todo mundo, resolvemos nossos problemas de saneamento? Infelizmente não.
Removemos matéria orgânica e deixamos a água potável, mas e o resto das coisas que a nossa água tem e que nossos sistemas de tratamento não remove?
Como assim? Que outras coisas que a água possui?
Você deve lembrar das aulas de biologia na escola que nosso organismo funciona como uma grande máquina que absorve todos os nutrientes dos alimentos que consumimos e descarta o que não nos serve, certo? Então por exemplo, sabe aquele cafezinho que a gente toma de manhã pra dar um up e conseguir lidar com nossas tarefas do dia? Então, esse café possui cafeína, uma substância que é um estimulante e deixa a gente animadão. Uma parte dessa cafeína é absorvida pelo nosso corpo e o resto é excretado via xixi. Adivinha onde essa cafeína extra vai parar? Isso mesmo, no sistema de tratamento de esgoto e depois no nosso sistema de tratamento de água. Aí você pode me perguntar? Mas essa cafeína é removida pelos nossos sistemas de tratamento? Eu te respondo com pesar que não, não é.
A cafeína extra que meu corpo excreta e a que o de todo mundo que toma aquele cafezinho inocente de todo dia acaba passando ilesa pelos sistemas de tratamento e volta para nós pela nossa água, aquela limpinha que vem pela torneira.
Já tá assustado? Calma aí que vem mais.
E se eu te contar que a mesma coisa que acontece com a cafeína acontece com aquele remédio para dor de cabeça que a gente toma de vez em quando? E também com aquele medicamento de uso contínuo que as pessoas que têm diabetes e problemas de pressão tomam todos os dias, às vezes, mais de uma vez por dia? E espero não te assustar ainda mais se eu te disser que isso acontece também com os hormônios dos anticoncepcionais que são cada vez mais comuns.
Resumindo tudo isso, porque é muita informação bombástica de uma vez:
Sempre que tomamos um remédio, apenas uma parte dele é absorvida pelo nosso organismo. (Se você quiser entender mais sobre isso tem um Scicast excelente sobre Cromofarmacologia que explica os mecanismos de absorção de medicamentos e que vale ouvir se ainda não fez). O restante do que não foi absorvido é excretado e volta para gente através da água que consumimos.
É preocupante, né?
Existe uma categoria de substâncias que é chamada de desreguladores endócrinos ou disruptores endócrinos. De forma geral, são substâncias (químicas e podem ser também os medicamentos e hormônios) que, por conta de sua estrutura química e apresentação em quantidades bem, mas bem pequenas mesmo, confundem nosso sistema endócrino fazendo com que nossos receptores de hormônios dos órgãos entendam que essas substâncias são os hormônios que nosso corpo deveria produzir gerando um desequilíbrio geral. Resumindo: nosso corpo detecta uma substância que ele acha que é um hormônio necessário para o seu funcionamento e interrompe a produção do hormônio de forma natural entendendo que já existe uma quantidade dele suficiente. Só que, como a substância não é o hormônio, a gente acaba ficando sem a quantidade necessária dele e gerando essa bagunça geral.
Tá, mas o que tudo isso tem a ver com a água e os nossos sistemas de tratamento? Eu te digo, tem tudo.
Nossa água tratada além dos resíduos de cafeína, medicamentos e hormônios ainda possui uma quantidade enorme de outras substâncias químicas que, quando entram em contato com nosso organismo através da água que consumimos, causam altas confusões no nosso corpo todo. Já existem estudos que relacionam casos de câncer, infertilidade em homens e mulheres e até má-formação em fetos em decorrência da exposição a essas substâncias.
Recentemente também encontraram uma grande quantidade de cocaína no mar em Santos/SP e, segundo os testes que foram realizados, as quantidades que foram encontradas são cerca de 100 vezes maiores do que as quantidades que foram encontradas nas praias no litoral de países dos EUA.
Quer dizer então que eu e você potencialmente estamos ingerindo pequenas quantidades de hormônios, medicamentos, cafeína, um monte de outras substâncias e até drogas na água limpinha que chega nas nossas casas? Sim! Nós estamos. E eu digo potencialmente porque existe essa possibilidade, mas enquanto não forem feitos testes na água não temos 100% de certeza do que ela possui.
Antes que você aí espertinho me diga que usa um filtro maneiro na sua casa e que está livre de tudo isso o que eu disse aqui neste texto ou que compra água mineral e que está até se sentindo leve nesse momento, isso não ajuda em nada. Ainda não temos filtros caseiros disponíveis no mercado que consigam remover toda essa infinidade de substâncias. Nem aquele famoso filtro de barro, nem aqueles mais chiques. Nenhum deles foi pensado para remover esse tipo de substância.
Então, por mais etapas de tratamento extra que a água que chega na nossa torneira possa passar, ela ainda vai ter essas substâncias. Além disso, outro aspecto importante a se ressaltar, a água no nosso planeta é cíclica, né? Nosso planeta é um sistema fechado (às vezes a gente esquece disso) ou seja, não tem como escapar.
A água é uma substância essencial para nossa existência e funcionamento de todas as atividades humanas. Não vai ter como parar de consumir água. O jeito é resolver isso.
O único lado bom dessa história toda é que a comunidade acadêmica já sabe do problema tem um tempo e já estão sendo pensadas soluções para resolvê-lo.
Falta ainda muito para gente resolver nossos problemas de saneamento por aqui no Brasil, como distribuição de água tratada e coleta e tratamento de esgotos e ainda estamos longe de pensar na próxima etapa.
Entendeu por que eu disse que, quando a gente finalmente resolver nossos problemas de saneamento universalizado, ainda vai ter um problemão para gente resolver?
Trabalho é que não vai faltar!
Até a próxima.
Izabella Simião. 29 anos, Bacharel em Ciência e Tecnologia e Engenheira Ambiental e Urbana, apaixonada por ciência. Ainda tenho dúvidas se sou de exatas, humanas ou biológicas então se você me explicar qual sua pesquisa eu vou querer estudar também.