Assisti à quinta temporada de House of Cards, recentemente. Acabei gostando, claro, mas bem menos que as anteriores. Vi depois que concordei com a crítica de que a qualidade caiu. Mas não era só isso. Era mais. Eu não sabia porque, mas a história não me impactava mais da mesma forma. Eu estava anestesiado, já.
A parábola do sapo na panela é sempre bem ilustrativa, nesse caso. Imaginemos um sapo jogado diretamente em uma panela com água fervente; no momento em que ele tocar a água, não vai aguentar e vai pular imediatamente pra fora dela. Contudo, imaginemos o mesmo sapo em uma panela com água em temperatura ambiente; agora, a panela e água vão esquentando aos poucos, com o sapo dentro. O sapo vai se acostumando paulatinamente ao ambiente e, sem sentir, será cozinhado.
Tirando o fato que o inventor desse experimento mental provavelmente foi o Schrödinger e sua cruzada contra os animais, a situação ilustra bem o sentimento do brasileiro. Nós somos o sapo. O inacreditável, o absurdo, aquilo que nos sufoca, nos cozinha, vira, paulatinamente, nosso novo normal. Somente mais uma terça-feira.
Em temporadas passadas, já vimos grandes mobilizações, articulações e jogadas políticas para fazer com que um político sedento por poder ascendesse em Washington. Vimos alianças políticas serem desfeitas. Traições. Mortes. Não houve um limite, uma barreira que não pudesse ser ignorada para que o objetivo fosse alcançado.
No início dessa quinta temporada, uma cena de pouco mais de cinco minutos apresenta um dos personagens a partir de uma manobra e articulação muito bem construída no Parlamento norte-americano. De repente, o personagem, que nem lá poderia estar, ganha direito a fala e palanque no meio da sessão do legislativo para passar sua mensagem. Incrível, não?
Um vice-presidente planejando tomar a si a presidência?
Um intricado jogo entre o poder público e privado para determinar os rumos políticos de uma nação?
A ausência absoluta do papel constitucional dos três poderes a fim de que se mantenha um status quo confortável aos mandatórios?
Estamos anestesiados porque posso pegar essas três perguntas e sinceramente não distinguir entre o que é a realidade brasileira ou o que é a ficção da série norte-americana. Estamos anestesiados porque o inacreditável, o impensável, o escabroso é só mais uma manchete no seu telejornal nacional. Vai repercutir hoje, talvez amanhã. Mas pode ter a certeza que até o fim da semana pelo menos dois ou três fatos igualmente inacreditáveis não tardarão a não nos chocar.
Frank Underwood (ou Urquhart, na versão inglesa) não é o Eduardo Cunha. Não é o Michel Temer. Não é o Lula, o Aécio ou seja lá quem for. Frank Underwood é um personagens. Os demais, nossa realidade. O mais assombroso dessa sensação de anestesia é a passividade. É rir a cada novo capítulo do nosso drama da vida real e soltar um #HouseofCunha. É compartilhar o tuíte da Netflix que faz graça com o que é nossa situação. É tomar como cômico, como imutável, como normal a exceção. É sentir as bolhas se formando na pele ante a temperatura da água e, quando muito, comentar: “Quente, hoje, não?”.
A dormência é, pois, nosso novo normal. O sangue nem circula mais. Nem mesmo a graça faz mais tanto sentido. Liga-se a TV não mais pra rir do próximo escândalo. Muito menos para se chocar, oras, estamos dormentes. Liga-se pra ver a próxima cena. O próximo passo que nos leva ao abismo de nós mesmos. Mas, ei, liga logo essa TV que depois quero ver novela, pois hoje ainda é terça-feira.
Só mais uma terça-feira.