Você já viu esse filme antes: uma corporação ou governo se instala em uma região nova, explora seus recursos e sua população até o ponto de ruptura, desencadeando uma revolta dos nativos que se valem de armas e instrumentos simples, muitas vezes providos pela própria natureza.

Várias obras de ficção já abordaram tal assunto, com Avatar sendo o mais recente. Porém a realidade pode ser muito mais interessante e fantástica: 30 anos atrás teve início uma guerra iniciada por ilhéus em busca de sua independência, que usaram sua engenhosidade e conhecimentos da floresta e conseguiram vencer até o outrora império em que o Sol não se punha.

Esta é a história da Guerra Civil de Bougainville ou, como é mais conhecida, da Revolução dos Cocos.

O Início

Bougainville é a maior das ilhas que compõem o arquipélago das Ilhas Salomão; ela foi descoberta em 1768 pelo explorador francês Louis de Bougainville que, com muita modéstia, batizou o lugar com seu nome. No século XIX a atividade baleeira era forte na região, e, depois destes, outros comerciantes e extrativistas se estabeleceram ali.

Os locais foram por séculos utilizados como burros de carga, trabalhadores braçais baratos e eram vilipendiados de todas as formas, fosse por britânicos, alemães ou japoneses, que ocuparam a ilha durante a Segunda Guerra.

Registros informam, no entanto, que os nipônicos os trataram melhor que todos os outros, mas ocupação é ocupação e ninguém nunca consultou os habitantes de Bougainville de qualquer forma. Com o fim da guerra, a ilha foi novamente incorporada ao Império Britânico como parte do protetorado de Papua-Nova Guiné (o antigo território alemão fora absorvido após a Primeira Grande guerra).

As coisas iam de mal a pior para os bougainvillianos, mas nos anos 1970 a situação degringolou: A Rio Tinto Group, uma companhia anglo-australiana especializada em mineração instalou na ilha uma subsidiária chamada Bougainville Cooper Limited, também conhecida como BCL. Esta começou a extrair cobre sem o menor compromisso com o meio-ambiente, em uma mina de 7 km² a céu aberto. As terras dos nativos foram tomadas e mais de um bilhão de toneladas de cobre, chumbo, arsênico e mercúrio foram jogadas no rio Jaba, que acabou completamente envenenado, estéril e morto, irrecuperável por séculos.

Em nome do lucro, o governo de Papua-Nova Guiné (que detinha 19,06% da BCL) negligenciou seu próprio povo e o afundou na miséria e morte, até que alguém disse enough is enough, tendo se cansado daqueles motherfucking extrativistas em sua terra.

Francis Ona, então um dos pouquíssimos locais que trabalhavam na BCL (dos 150 mil residentes, apenas cerca de 1.300 foram contratados) se apresentou como intermediário entre a empresa e o povo e sugeriu a interrupção dos processos de mineração em prol de proteger o ecossistema, e que a Rio Tinto pagasse uma indenização de US$ 10 bilhões à população, um valor mais alto que o da própria mineradora.

Sem surpresa, a proposta de Ona foi entendida como uma piada pelos executivos da BCL, que deram de ombros para aquele “selvagem”. O que foi um erro gigantesco: ele saiu da empresa e foi até o depósito, roubou cerca de 50 kg em explosivos e organizou uma guerrilha contra a mineradora.

Ona e seus comandados começaram a sabotar sistematicamente as operações da BCL em Bougainville, de modo a inviabilizar as operações de extração de cobre no país. A companhia, desesperada recorreu ao governo, que desembarcou com tropas compostas por soldados, helicópteros e armamento pesado.

Embora Papua-Nova Guiné tenha se tornado independente em 1975, o país teve grande apoio da Austrália e consequentemente do Reino Unido, que estava obviamente defendendo seus interesses comerciais.

Mas pouco importava quem era o inimigo, Francis Ona e seus guerrilheiros não estavam dispostos a desistir. Assim, em novembro de 1988 a Guerra Civil de Bougainville teve início.

Os Cocos

A missão inicial era suprimir o Exército Revolucionário de Bougainville (Bougainville Revolutionary Army, ou BRA) rapidamente, apoiado no entendimento de que um bando de silvícolas não ofereceria resistência às tropas papuásias. Só que as tropas do BRA eram engenhosas e, embora não tivessem equipamentos ou treinamento militar, elas tinham a floresta.

Eles improvisaram tudo: usaram estilingues poderosos capazes de acertar um helicóptero, reconstruíram carros avariados e utilizaram seu conhecimento do território para fazer ataques-surpresa, com zarabatanas, estilingues e flechas venenosas, similar ao que os partisans franceses fizeram na Segunda Guerra.

Aqui Francis Ona demonstra uma das armas usadas no conflito: uma besta rústica moldada como uma espingarda, que serviu bem a seu propósito.

https://www.youtube.com/watch?v=YPF3cnIdy5s

No fim o BRA expulsou as forças militares da ilha, e o governo de Papua-Nova Guiné então impôs um bloqueio econômico, fechando o mar territorial e dando ordens de afundar qualquer navio que se aproximasse de Bougainville. A intenção era fazer com que a população se voltasse contra as forças de Ona, mas ele odiavam a BCL e os invasores muito mais.

Ona instruiu os bougainvillianos a desenvolverem plantações autossustentáveis, de modo a não depender de mercadorias de fora. A floresta proveria remédios (fitoterapia), alimento, proteção e muito mais. Ao mesmo tempo as forças de Ona consertaram as máquinas e equipamentos que a BCL deixou para trás quando picou a mula às pressas. Os poucos funcionários que permaneceram em Bougainville, em sua maioria locais se uniram às forças revoltosas.

A engenhosidade de Ona, o MacGyver de Bougainville, se revelou novamente, aproveitando a principal matéria-prima da ilha: cocos. Ao extrair o óleo da fruta em diversos graus de pureza. Os locais podiam cozinhar, fazer sabão e até utiliza-lo no lugar do escasso diesel em veículos e motores que foram reparados e postos em uso novamente.

A ironia, o óleo de côco é muito menos poluente e mais eficiente que outros combustíveis, totalmente natural e que não precisa de aditivos, o que fez da Guerra Civil de Bougainville a Primeira Guerra Ecológica de que se tem notícia.

Para obter energia elétrica, os bougainvillianos canalizaram parcialmente um rio e empregaram uma roda d’água, movimentando geradores simples e dando conforto à população. Tudo o que os moradores precisavam, a floresta fornecia, o que deixava o governo papuásio (e os demais) irado.

Os anos iam se passando e o domínio do BRA se estendia cada vez mais, chegando a 80% do território de Boungainville. Em resposta, o governo de Papua-Nova Guiné pediu nova ajuda à Austrália, que enviou mercenários da companhia privada britânica Sandline International. Novamente, Ona e os revoltosos puseram os soldados da fortuna para correr, e a situação se tornou insustentável.

O Resultado

Sem ter como vencer a BRA e a população à força, o governo papuásio baixou a bola e iniciou as negociações de paz com mediação da Nova Zelândia. Em 1997, a autonomia de Bougainville foi reconhecida e em 2005 Joseph Kabui foi eleito presidente.

Em 15 de junho de 2019, os governos de Papua-Nova Guiné e Bougainville definirão a data para um futuro referendo popular, programado para 2020 que decidirá pela independência ou não da região autônoma.

Quanto a Francis Ona, como um herói clássico, ele viveu recluso por muitos anos, tendo feito sua primeira aparição pública após o início da guerra apenas em 2004, quando a população lhe deu o título honorário de “Rei de Bougainville”. Antes disso ele havia dado depoimentos para o documentário sobre o conflito, mas no geral Ona nunca buscou holofotes ou reconhecimento.

Ele se recusou a concorrer ao cargo de presidente e preferiu viver de forma simples, tendo ironicamente sucumbido a um dos males comuns em regiões de floresta: Francis Ona morreu de malária, aos 52 anos em 2005; infelizmente ele não viu o que o futuro reserva para a ilha de Bougainville e o povo que defendeu com unhas, dentes e cocos.

O premiado documentário A Revolução dos Cocos (The Coconut Revolution, 2001) conta toda a história de como os nativos conseguiram rechaçar a BCL e as tropas governamentais, e como a luta de Ona levou à criação da região autônoma de Bougainville. Ele está disponível no iTunes, na Amazon e na Google Play Store.