É muito provável que você já tenha respondido a essa questão antes mesmo de ter terminado de ler o título do texto e, mais provavelmente ainda, você respondeu que sim. Acertei? Afinal, devem ter sido vários os exemplos que pensou enquanto lia esse parágrafo, não obstante, devemos sair de nossas experiências individuais e entender esse fenômeno historicamente.
Vamos, então, passar pelo Antigo Testamento, Maquiavel e pela catequese jesuítica nas Américas… E se estiverem dispostos, chegaremos na modernidade com Churchill e Nixon, e se tivermos fôlego, chegaremos nos exemplos do nosso cotidiano que estão pensando agora!
/break/
Aristóteles, na Retórica, afirmava que o medo é uma paixão suscitada pela imaginação de um mal vindouro que seja capaz de causar destruição ou dor, e a condição para que experimentemos o medo é que estes males pareçam iminentes.
Ainda precisaremos olhar com mais cuidado e atenção para a emoção medo, no entanto, com essa definição inicial de Aristóteles, podemos começar a viajar para o passado…
O Deuteronômio, quinto livro da Torá e Bíblia cristã, datado do século VII AEC, é um livro de Lei, que sintetiza e organiza normas, costumes – e punições – do povo de Israel. Por ter caráter divino, de revelação, não era passível de questionamento e debate, e colocava o poder nas mãos daqueles responsáveis por sua leitura e transmissão: os anciãos e sacerdotes, fiéis depositários das leis.
A importância histórica e política desse livro e de todo o Pentateuco (a Torá judaica ou os primeiros cinco livros da Bíblia cristã) reside no fato terem sido o guia central de toda uma sociedade por séculos, que reverberou em diversas outras e continua hoje como fundamento de muitas tradições e, em alguns casos, como argumentos em debates legislativos de estados laicos.
Nos livros da “Lei”, o homem é ensinado a temer a Deus e suas leis, como podemos ver em uma passagem do Deuteronômio.
Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece ao pai e à mãe e não os ouve mesmo quando o corrigem, o pai e a mãe o pegarão e levarão aos anciãos da cidade, à porta do lugar, e dirão aos anciãos da cidade: ‘Este nosso filho é rebelde e indócil, não nos obedece, é devasso e beberrão’. E todos os homens da cidade o apedrejarão até que morra. Deste modo extirparás o mal do teu meio, e todo Israel ouvirá e ficará com medo. (BÍBLIA, 2002, Deuteronômio Cap. 21, vers. 18-21)
Para que não pensem ser caso isolado – além de sugerir que leiam o Deuteronômio e o Levítico – o texto continua sua perspectiva de inculcação do medo ao suscitar a lei de Talião, ao afirmar que a vítima deveria agir conforme seu agressor, “para que os outros ouçam, fiquem com medo, e nunca mais tornem a praticar semelhante mal no meio de ti que o teu olho não tenha piedade. Vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” (BÍBLIA, 2002, Deuteronômio, Cap. 19, vers. 19-21).
No entanto, tudo isso não era senão a extensão do temor inicial que homem e mulher deveriam ter e que é sintetizado na máxima “para que aprendas continuamente a temer Iahweh teu Deus” (BÍBLIA, 2002, Deuteronômio, Cap. 14, vers. 23).
Alguns séculos no futuro, na Europa do Século XVI, fortemente influenciada pelas tradições desta mesma Bíblia, podemos continuar procurando textos que, também, possuam um caráter de síntese de um momento histórico e que continuem colocando o medo na ordem do dia para aqueles que governam.
Ao Príncipe “é muito mais seguro ser temido do que amado”, aconselhava Maquiavel, “pois o amor (…) rompe-se sempre que lhes aprouver, enquanto o medo que se incute é alimentado pelo terror do castigo, sentimento que nunca se abandona”.
O medo, que é emoção fundamental para a sobrevivência dos animais e da espécie humana, foi considerado por Maquiavel, em 1513, como um dos elementos de exercício do poder; tese esta que não era exclusiva de Maquiavel, como podemos notar em um relato de Symphorien Champier, um médico e nobre, que, em 1510, escreveu:
“O Senhor deve tirar prazer e delícia das coisas em que seus homens têm sofrimento e trabalho, [seu papel é o de] manter terra, pois pelo pavor que os homens do povo têm dos cavaleiros eles trabalham e cultivam as terras por pavor e medo de serem destruídos” (DELUMEAU, 1989, p. 15).
Seguindo tais orientações, a colonização portuguesa no Brasil utilizou-se do medo de violentos castigos a quem não os obedecesse, como estratégia de dominação. De acordo com Manuel da Nóbrega, chefe da primeira missão jesuítica nas Américas, o medo era o que marcava as relações dos nativos com o poder português. Tais observações levaram Manuel da Nóbrega e as missões jesuíticas a, também, utilizarem o medo como método para a cristianização (MASSIMI, MIRANDA, 2001).
Em carta de 1549 Manuel da Nóbrega escreve: “[os índios] estão espantados de ver a magestade com que entramos e estamos, e temem-nos muito, o que também ajuda.” Logo no ano seguinte, em 1550, ele continua: “talvez por medo se convertam mais depressa do que o fazem por amor”.
Oito anos após, em 1557, ele sintetiza:
Assim por experiência vemos que por amor é muito difficultosa a sua conversão, mas como é gente servil por medo fazem tudo, e posto que nos grandes por não concorrer sua livre vontade, presumimos que não tenhão fé no coração, os filhos creados nisto ficarão firmes cristãos, porque é gente que por costume e criação com sujeição farão della o que quizerem, o que não será possível com razões nem argumentos. (NÓBREGA em carta de 1557, apud MASSIMI, MIRANDA, 2001, p. 48)
Essa orientação pedagógica tinha origens e motivos claros e temos, pela história, a clareza de que foi bem-sucedida, mas cabe nos perguntar se ela ficou nos séculos anteriores, ou se as luzes da modernidade trouxeram alguma mudança nas relações sociais e seus usos do medo?
Os novos processos de colonização do Século XX podem nos ajudar a responder à questão.
Já em nossa história moderna, em 1919, Winston Churchill, quando presidia a British Air Council, afirmou:
“não consigo entender tantos melindres sobre o uso do gás. Estou muito a favor do uso do gás venenoso contra as tribos incivilizadas. Isso teria um bom efeito moral e difundiria um terror perdurável” (GALEANO, 2012, p. 38).
Sintetizando séculos de experiência, Richard Nixon, ex-presidente dos Estados Unidos da América, entendeu esse ensinamento como estratégia política ao afirmar:
“A pessoas reagem ao medo, não ao amor. Eles não ensinam isso na catequese, mas é a realidade” (GLASSNER, 2003, p. 39)
O temor a Deus no Pentateuco do século VII A.E.C., as orientações de Maquiavel, os relatos jesuíticos do século XVI e a afirmação de Churchill no século XX são apenas quatro exemplos do uso do medo como instrumento de poder, outros tantos poderiam ser enumerados, mas estes poucos exemplos têm um significado importante por pertencerem a diferentes aspectos da vida social em diferentes períodos de tempo. O primeiro tinha caráter oficial, de legislação, o texto de Maquiavel foi como uma cartilha para as monarquias absolutistas do período e a afirmação de Churchill soa como um desabafo de um líder militar que não pôde utilizar todo seu arsenal, seja este bélico ou, como o próprio admite, de força moral.
Os exemplos políticos e militares trazem de forma muito elaborada o uso do medo; no entanto, também é possível seu uso em situações cotidianas, como em nossas relações pessoais com outras pessoas, nas práticas educativas e no mundo do trabalho, mas continuaremos essa discussão em um próximo texto. Até lá, convido-os a trazerem outros exemplos religiosos, políticos e militares, e discutirmos a questão aqui nos comentários!
BÍBLIA. A.T. Deuteronômio. In: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente (1300-1800). (H. Jahn, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GALEANO, Eduardo. Os filhos dos dias. (E. Nepomuceno, Trad.). Porto Alegre: L&PM Editores, 2012.
GLASSNER, Barry. Cultura do Medo. (L. Knapp, trad.). São Paulo: Francis, 2003.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. (O. Bauduh, Trad.) São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores)
MASSIMI, Marina; MIRANDA, Lilian. A paixão do medo nos documentos de viagens e na literatura espiritual e filosóficados jesuítas, no Brasil do século XVI. In: MASSIMI, M., SILVA, P. J. C. Os olhos vêem pelo coração. Conhecimento psicológico das paixões na história da cultura brasileira dos séculos XVI a XVII. Ribeirão Preto, Holos, 2001.
Henrique Castro, o famigerado Kpeta é nerd e gosta de contar piadas, causos e trocadilhos, é psicólogo e professor, mas hoje \trabalha em escritório. Contudo queria ter sido piloto de avião ou rockstar ou filósofo, mas agora acha que quer ser cineasta.