Francis Galton foi um dos primeiros estudiosos a alegar que a inteligência poderia ser hereditária. Galton foi um homem polêmico, um dos primeiros a falar sobre eugenia e outras formas de teorias racistas, algo muito comum no século XIX. Polímata, teve contribuições em diversas áreas do conhecimento, especialmente na Estatística. Estima-se que seu QI chegava a 200 pontos. Galton era primo de Darwin — sim, esse mesmo, o da Origem das Espécies.
Duas pessoas geniais na família. Isso pode ser uma pista de que o palpite inicial de Galton sobre a inteligência poderia guardar certa veracidade.
Falar de influências genéticas sobre características humanas sempre gera controvérsia. É muito comum confundir influência com determinismo genético, ou seja, a ideia de que as pessoas estariam destinadas a terem certa característica para sempre, fixamente. Mas Biologia não é destino.
Isso pode ser especialmente complicado de explicar na Psicologia. Historicamente, há um grande debate Nature x Nurture, que, muito embora, tenha sido deixado de lado por uma visão que integra influências biológicas e ambientais, ainda teima em não deixar os Departamentos de Humanas em paz — na verdade, as Humanas é que não se deixam em paz; especialmente a Psicologia tem um talento fora do comum para chutar cadáveres teóricos.
A inteligência é um dos assuntos mais importantes e mais estudados na Psicologia. No entanto, abordagens sóbrias e cientificamente embasadas às vezes são soterradas por esses antigos medos. Contrariamente, os cursos de Psicologia falam pouquíssimo sobre esse tema, ou falam de maneira cientificamente muito pouco rigorosa.
Foi pensando na campanha de desinformação pela qual esse assunto passa que resolvi escrever este texto. Tentarei mostrar que falar de influência genética sobre o nível de inteligência é na verdade falar da chamada herdabilidade (uma tradução meio autoral do inglês heritability). E falar de herdabilidade significa estar partindo de um contexto de análise populacional, não individual.
Nenhum traço é 100% herdável
A variação de inteligência sofre influência do ambiente e da genética tanto quanto fenômenos considerados “mais biológicos”. Por exemplo, o câncer de mama parece ser 30% hereditário, o que é um percentual baixo. O índice de massa corporal, por outro lado, é quase 60% explicado pela hereditariedade, o que é uma porcentagem moderada. A diabetes é quase 90% explicada pela hereditariedade, número alto. Nenhum desses fenômenos é integralmente explicado pela genética.
Fenômenos psicológicos também são altamente “herdáveis” nesse sentido. Por exemplo, a esquizofrenia tem um índice de hereditariedade moderada de pouco mais de 60%, enquanto o de depressão e alcoolismo, 50%.
Curiosamente, as pessoas têm mais facilidade de aceitar que transtornos são ao menos parcialmente explicados pela genética do que a inteligência. Hoje já é bem estabelecido por evidências empíricas que a capacidade geral de resolver problemas, capacidade de raciocinar, pensar em problemas abstratos e memorizar informações — resumidamente, o que chamamos de inteligência ou habilidade cognitiva geral, ou, ainda, fator g — é um dos construtos psicológicos mais explicados pela genética. Existem técnicas modernas de genética comportamental que mostram isso, como a Genome-wide Complex Trait Analysis (GCTA).
O que explica a variação da inteligência entre indivíduos?
Diferentes pessoas têm diferentes alturas, assim como diferentes níveis de inteligência. Assim como a altura, a inteligência também possui distribuição populacional normal. Isso significa que se medirmos a altura e a inteligência de uma grande quantidade de pessoas, teremos um gráfico em forma de sino. A parte do meio, mais alta, vai ter a maior parte das pessoas, que vão ter inteligência mediana e altura mediana. Poucos vão ser muito altos e muito baixos, assim como poucos vão ser muito inteligentes e muito pouco inteligentes — esses ficam nas partes laterais da curva, que são menos altas e cabem menos indivíduos.
Colhendo essas amostras de populações, podemos também verificar quais fatores estão explicando esses diferentes níveis de inteligência. Isso começou a ser feito décadas atrás com gêmeos. Esses irmãos compartilham muito material genético, e nem sempre compartilham o mesmo ambiente, nem os mesmos pais. Isso sempre ofereceu um cenário prolífico para estudar a herdabilidade.
A maioria dos estudos estima que a herdabilidade da inteligência explica cerca de 80% da variação de inteligência numa população — apesar dessa porcentagem variar com a idade. Observe que a herdabilidade é uma medida populacional, então não é a mesma coisa dizer que 80% da inteligência de um indivíduo é explicada pela genética.
Herdabilidade não é a mesma coisa que determinação genética. A primeira explica a variação populacional do traço, a segunda explica a causa do traço. Por exemplo, a quantidade de dedos que os indivíduos têm é determinada ou causada geneticamente: o programa genético dos primatas diz que teremos ao todo 20 dedos (10 nas mãos e 10 nos pés). Mas isso não implica passarmos toda a vida com os mesmos 20 dedos. Dedos podem ser amputados por algum acidente ao longo da vida, por exemplo. Ou seja, o programa genético dos primatas não explica a variação da quantidade de dedos ao longo da vida. Isso vai se explicado muito mais por fatores ambientais (e.g. acidentes).
A inteligência também pode ter algum tipo de determinação genética, mas a herdabilidade sozinha não explica a variação do nível de inteligência entre as pessoas. Ou seja, as pessoas podem vir a nascer com diferentes níveis de QI, mas essa variação vai começar a aumentar ou diminuir ao longo da vida também com base em fatores ambientais (e.g. educação) — muito embora a parcela explicativa da herdabilidade seja bem alta, assim como em outras variáveis psicológicas, como a personalidade.
A bandeira branca da moderação e do respeito às evidências
O título deste texto foi uma referência ao artigo The paradox of intelligence: Heritability and malleability coexist in hidden gene-environment interplay, publicado agora em 2018 na revista especializada Psychological Bulletin. Modestamente, minha intenção aqui foi escrever mini-texto para tratar pelo menos das questões essenciais desse artigo.
É sempre desafiador escrever um texto não necessariamente direcionado ao público especializado. Mais ainda, pode ser complicado introduzir conceitos de genética comportamental, psicologia diferencial e estatística num espaço de cerca de três páginas.