Neil Gaiman é uma sumidade no ramo autoral. O bardo de Portchester é sem dúvida alguma um dos maiores autores fantásticos da atualidade (sorry Martin e Rothfuss) e um poço sem fundo de conhecimento mitológico, Sandman não seria nada sem ele e teríamos perdido uma das sagas mais sensacionais das HQs de todos os tempos.
Seus livros estão entre os mais intrigantes e incríveis do gênero de fantasia e mitologia, ainda que sua estreia Belas Maldições, de 1990 seja uma farsa no bom sentido: ele jamais poderia ser escrito só por Gaiman e nem apenas por Terry Pratchett (da série Discworld), visto que o primeiro não tem um senso de humor tão apurado e o segundo não detinha tanto conhecimento filosófico e mitológico.
No fim das contas um cobriu as falhas do outro e o resultado é uma obra magnífica, sobre um Apocalipse em que tudo dá errado com direito a um demônio e um anjo que convivem pacificamente na Terra, um Anticristo criado pela família errada, um caçador de bruxas e uma bruxa de verdade. Ah, e o carro do demônio transforma todas as fitas cassete inseridas nele em álbuns do Queen (o que claro, foi ideia de Pratchett).
Belas Maldições vai virar série, com Gaiman na produção executiva e deve chegar à Amazon Prime Video em 2018, mas enquanto isso o canal Starz colocou no ar a primeira temporada da obra que é considerada a obra-prima do escritor inglês: a adaptação do romance Deuses Americanos.
É tudo uma questão de fé
A trama não é segredo para ninguém, até por se tratar de um livro lançado em 2001 e ela estar escancarada na capa e no título da série: a história trata de deuses, novos e velhos e sua relação com os homens, que não é nem de longe tão benéfica quanto se pensa. A diferença no entanto está na forma como Gaiman conduz a narrativa: em primeiro lugar ele distorceu o conceito de “fatos” e “crença”, tornando ambos dois lados de uma mesma moeda. A fé das pessoas comuns dá forma e poder a entidades que se tornam a personificação dos elementos, sentimentos e objetos de sua adoração, veneração ou conveniência, o que no fim das contas é tudo a mesma coisa.
Pense assim: cada vez que você utiliza seu smartphone, que você assiste TV, que consome notícias sobre sua celebridade favorita, que deposita sua confiança na medicina ou na ciência está na verdade exercendo uma profissão de fé, está talhando novos altares e venerando (e dando poder a) novos tipos de deuses. E são esses deuses que estão suplantando as antigas deidades, que hoje são meros imigrantes numa América que quase os esqueceu, vendo-os hoje apenas como mitos e lendas. Todas as crenças e religiões geraram seus próprios deuses, portanto há divindades eslavas, egípcias, hindus, celtas e… Jesus. Ou mais de um, para ser exato.
Esse é o segundo ponto interessante sobre Deuses Americanos: a importância dos imigrantes na formação dos Estados Unidos. Todos os deuses antigos chegaram ao Novo Mundo trazidos por seus fiéis, assim como toda a miríade de estrangeiros que formaram o país (o próprio Gaiman é um imigrante, tendo trocado o Reino Unido pelos EUA nos anos 1990) e em tempos como hoje, com a administração do presidente Donald Trump assumindo uma posição tão anti-estrangeiros e anti-imigrantes é importante tal obra lembrar de como sua nação foi erguida, com o esforço de filhos e filhas de várias nacionalidades que encontraram seu lar na América. Assim como seus deuses, trazidos a tiracolo.
O grande porém, no entanto é que ninguém em Deuses Americanos é completamente bom ou mal, sejam os deuses (novos ou antigos) ou o protagonista Shadow Moon (Ricky Whittle), um ex-presidiário que viu sua vida ir de mal a pior em um instante, encontrando na oferta de emprego do enigmático Mr. Wednesday (Ian McShane, o Barba Negra de Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas) um passaporte para um mundo oculto, povoado por criaturas que ele, um cético convicto jamais imaginou que existissem. Seu empregador requisita seus serviços (o que inclui roubo, trapaça e uso de força) para ajuda-lo em sua missão de reunir os velhos deuses e iniciar uma guerra total contra os novos, matar os rivais e recuperar seu lugar nos corações e mentes do povo.
Shadow passa a maior parte do tempo duvidando de tudo e até de sua própria sanidade, o que só piora quando ele começa a ter visões (ou assim lhe parece) com sua recém-falecida esposa Laura (Emily Browning, a Babydoll de Sucker Punch e a Violet Baudelaire da versão para cinema de Desventuras em Série). E para piorar os novos deuses também estão cientes que Mr. Wednesday está tramando algo, e passam a atormentar o pobre Shadow ora ameaçando-o, ora o seduzindo para que ele mude de lado e se alie à “nova ordem”.
E Shadow é uma pessoa completamente comum, munido apenas de truques com moedas e o streetwise que aprendeu na cadeia; isso que faz dele uma âncora para o leitor/espectador, que está tão desnorteado e confuso quanto o protagonista e não sabe mais em que acreditar. Ele é o nexo entre o que é “real” e o que é “fantasia”, um apoio para que nós não fiquemos completamente perdidos numa realidade impossível e confusa.
Sobre a série em si: a montagem é excelente, a fotografia e figurino estão impecáveis e as adaptações de um texto de dezesseis anos de idade foram bem implementadas. O Technical Boy (Bruce Langley) está bem menos estereotipado em relação ao original, se aproximando mais dos jovens CEOs e técnicos do Vale do Silício e que é algo plenamente compreensível e aceitável, incluindo referências à obra de Stanley Kubrick. Já Bilquis (Yetide Badaki) foi mais profundamente modificada, deixando de ser uma prostituta para se tornar uma “caçadora” de parceiros sexuais através das redes sociais.
Os três primeiros capítulos ainda trazem as ótimas atuações de Gillian Anderson (Arquivo X, The Fall) e Peter Stormare, respectivamente como Media e Czernobog; a primeira numa interpretação memorável de uma personagem do passado e o segundo dando um ar ameaçador a uma criatura que a princípio não é mais do que um velho bêbado.
Segundo Gaiman e Brian Fuller (Hannibal, Pushing Daisies, Star Trek: Discovery), a dupla de produtores da série os personagens menores dos livros terão seus papéis expandidos, até para prolongar uma trama que mal estreou e já garantiu uma segunda temporada. Melhor para nós.
Vale alertar que Deuses Americanos, assim como o livro não é indicada para quem não gosta de interpretações livre sobre religiões (algo que Neil Gaiman sempre adorou fazer) e também segue o padrão Game of Thrones de violência (mais do que na obra original, até para injetar ação na obra) e nudez, masculina inclusa.
Conclusão
Deuses Americanos é uma das melhores séries no ar atualmente, fruto da mente criativa de Neil Gaiman e da excelência em produção de Brian Fuller; o resultado é uma obra tensa, substancial e incrivelmente necessária para o momento que os Estados Unidos vive hoje. Há grandes chances de que você não entenda nada mas acredite, é preferível que seja assim ou não teria tanta graça. O melhor a fazer é calçar os sapatos de Shadow Moon e se deixar levar até onde a estrada permitir. E tentar não ficar louco no processo.
Dica final: não se preocupe se você não leu o livro (o que recomendo fortemente), é absolutamente possível aproveitar a série sem conhecimento prévio. Na minha opinião é a melhor forma de aprecia-la pois gera o senso de descoberta, deslumbramento e principalmente, de confusão na cabeça do espectador, a intenção original de Neil Gaiman ao escrever seu best-seller.
Cotação:
5/5 moedas de ouro (de verdade).
https://www.youtube.com/watch?v=tLZrqTxmdv0
Deuses Americanos é exibida aos domingos no canal Starz nos Estados Unidos e pode ser acompanhada no Brasil através do serviço de streaming Amazon Prime Video, com episódios novos todas as segundas-feiras.