A palavra “gravação” leva a mal-entendidos. Apenas gravações ao vivo registram um evento: gravações em estúdio, que são a grande maioria, não registram nada. Montadas a partir de pedaços de eventos reais, elas constroem um evento ideal. Elas são como a fotomontagem de um minotauro.
Quem disse isso não fui eu, mas sim o escritor Evan Eisenberg, em seu livro “The Recording Angel”. E, muito embora, tais palavras possam parecer óbvias a alguns dos mais escolados no universo musical, o seu real significado pode acabar passando abaixo do radar dos mais leigos. O fato, no entanto, é que todos estamos envolvidos na grande cadeia de produção e consumo de música, seja na condição de emissores ou de receptores. Então, por que não tentar entendê-las um pouco mais a fundo?
A misteriosa analogia de Eisenberg refere-se, naturalmente, ao universo da fonografia: a habilidade humana de registrar sons em meios materiais (ou, mais recentemente, meios digitais), tornando-os passíveis de reprodução, edição e duplicação. Tanto pelo nome quanto pela descrição, a associação imediata entre a fonografia e a fotografia torna-se quase inevitável. Em sua essência, ambas são técnicas de registro e estavam inicialmente dedicadas à captura de pequenos fragmentos da realidade, com o máximo possível de fidelidade.
A história da fonografia se inicia em meados do Século XIX. E o mais comum é que se atribua o início dessa trajetória ao ano de 1877, data oficial da invenção do fonógrafo por Thomas Edison. Sim, o Thomas Edison.
O fonógrafo
O famigerado fonógrafo nada mais era do que um equipamento capaz de captar as vibrações sonoras que viajavam pelo ar. Então, por meio de um intrincado sistema de membranas e agulhas, gerava, sobre chapas metálicas, sequências de pequenos sulcos, cujos formatos eram perfeitamente análogos às ondas sonoras que os tinham provocado.
E, ao se realizar o procedimento inverso, fazendo com que a agulha do fonógrafo lesse as impressões que tinha causado, e as enviasse de volta por todo o sistema, voilá: o som registrado era finalmente reproduzido. Um pequeno momento sonoro havia sido capturado.
O som do fonógrafo de Thomas Edison. 1877.
A princípio, a criação e aplicação dessa tecnologia nada tinham a ver com a comercialização de música: ela estava muito mais relacionada a pesquisas e desenvolvimento na área das telecomunicações. E mesmo quando a música e a fonografia começam a se encontrar, por volta dos anos 1890, o grande objetivo daqueles envolvidos com esse universo torna-se apenas um: o aprimoramento na fidelidade dos registros fonográficos aos sons reais.
O fato é que, desde os anos 1870 até o final dos anos 1910, a fonografia era uma prática puramente mecânica, ou seja, não havia o intermédio de qualquer outro tipo de energia no processo de registro de sons. Este, por sua vez, exigia altíssimos níveis de energia sonora para que pudesse ser realizado adequadamente. Consequência natural disso é que os registros fonográficos tendiam a ser bastante ruidosos, além de favorecerem os instrumentos e vozes de maior potência e de negligenciarem certas faixas de frequência sonora.
Os fonógrafos primitivos ainda estavam muito longe do nível de sensibilidade de um ouvido humano. E, não por acaso, essas primeiras décadas da comercialização de música gravada viram um favorecimento dos artistas que conseguiam produzir maior potência sonora. É o caso do cantor italiano Enrico Caruso, cujo treinamento operístico o havia preparado para preencher salões inteiros com a sua voz.
Enrico Caruso – O Sole Mio. 1916.
Esse estado de baixa fidelidade, no entanto, provocava insatisfação em alguns recordists, que, pouco a pouco, desenvolviam técnicas para elevar a qualidade de seus registros. A busca ainda era por aprimorar o seu poder de captura da realidade, e nesse sentido, uma nova e poderosa arma foi introduzida no ano de 1919: o microfone.
O som transformado em eletricidade…
Ao converter os impulsos mecânicos das ondas sonoras em impulsos elétricos que seriam recebidos pelo fonógrafo, o microfone diminuía a inércia do sistema de gravação. Este se tornava, então, sensível a sons de menor intensidade, e a frequências que outrora poderiam passar despercebidas. Assim, aumentava-se drasticamente a fidelidade dos registros sonoros, mas, mais importante: ganhava-se uma ferramenta com a qual, pela primeira vez, se podia experimentar a obtenção de sons novos e desconhecidos.
Um microfone, afinal de contas, poderia ser posicionado a poucos centímetros de um trompete, um violino ou um tambor; pontos onde dificilmente o membro de uma plateia colocaria os seus ouvidos. Não que essas técnicas de posicionamento tenham se tornado comuns de imediato, mas a mera possibilidade de sua aplicação indicava novos caminhos para o desenvolvimento da fonografia. O Santo Graal ainda era a alta fidelidade sonora, mas, pouco a pouco, os microfones e fonógrafos deixavam de ser apenas ferramentas nas mãos de engenheiros, e caminhavam para se tornar também instrumentos nas mãos de artistas.
As décadas de 20, 30 e 40 foram basicamente de evoluções quantitativas. Sistemas de captação, gravação e reprodução cada vez melhores aproximavam os registros daquilo que estava sendo registrado. No entanto, algo nessa cadeia de produção ainda se mantinha muito semelhante ao que era no princípio de tudo.
Louis Armstrong And His Hot Five – Heebie Jeebies. 1926.
Mesmo que captado e transformado em eletricidade por um microfone, para ser registrado, o som ainda deveria impressionar mecanicamente uma matriz de gravação. Essa era normalmente um disco, constituído de material rígido, o que praticamente impossibilitava qualquer tipo de alteração posterior na gravação. Até então, os registros fonográficos eram inalteráveis, e, para que isso mudasse, faziam-se necessárias matrizes de um material mais maleável.
… E a eletricidade transformada em som!
Um dos muitos subprodutos da vitória aliada na 2ª Guerra Mundial, a fita magnética foi introduzida comercialmente em 1948. Finalmente, se completava a conversão da fonografia de um estado inteiramente mecânico para um inteiramente eletromagnético. Cruzou-se a linha de chegada da altíssima fidelidade sonora. E, por mais que os fonogramas ainda fossem copiados e distribuídos em discos, as matrizes em forma de fita abriam todo um oceano de novas possibilidades. A era da manipulação sonora havia chegado.
Diferentemente dos discos, as fitas armazenavam as informações recebidas não em sulcos esculpidos mecanicamente, mas em variações nos seus padrões magnéticos. Além disso, podiam ser cortadas, coladas e remendadas com relativa facilidade. Pode parecer pouco, mas essas duas pequenas inovações foram responsáveis por enormes revoluções na prática da fonografia.
Primeiro, a maleabilidade do material significava maleabilidade do próprio registro fonográfico. Se antes uma única performance deveria ser registrada perfeitamente do início ao fim, sem interrupções, agora surgia a possibilidade de se fazer emendas. Se antes o músico era obrigado a escolher entre a Tomada 1 e a 2, agora o ideal talvez fosse fabricar, artificialmente, uma combinação entre ambas.
Segundo, o registro em forma eletromagnética, e não mais mecânica, facilitava a prática de se sobrescrever duas gravações diferentes: os famigerados overdubs. Ou seja, se antes a gravação de uma única música deveria ser feita com todos os músicos tocando simultaneamente no mesmo ambiente, agora emergia a possibilidade de se gravar cada instrumento, cada linha musical, separadamente.
Les Paul – Lover. 1948.
Não havia mais um desafio em se registrar perfeitamente aquilo que se ouvia com músicos reunidos no estúdio. A busca, agora, era por se registrar aquilo que não se ouvia. Combinações improváveis de timbres e instrumentos se tornavam possíveis. Sons imaginários se aproximavam cada vez mais da realidade.
A fuga da realidade
Por coincidência ou não, o palco para o surgimento dessas novidades foram os anos 50 e a explosão do rock n’roll. A juventude, que agora aquecia o mercado fonográfico, não mais demandava por gravações perfeitas e cristalinas. Eles agora ansiavam por fonogramas que transmitissem energia, impacto sonoro, que fizessem aquilo que uma banda ao vivo talvez não conseguisse fazer.
O parâmetro, no entanto, ainda era a realidade.
Nesse contexto, eventualmente surgiu um conjunto que, a princípio, não passava de mais do mesmo. Rock n’Roll, feito por jovens, para jovens. As gravações, com alto nível de energia e eventuais overdubs, eram, como tantas outras, feitas para divertir e inebriar. O seu sucesso comercial, no entanto, passou dos limites previamente conhecidos.
Alguns anos de sucesso estrondoso, experimentações musicais, avanços tecnológicos e turnês infindáveis eventualmente mostraram a que vieram. Por volta de 1966, os Beatles estavam finalmente fartos dos palcos e de suas limitações. Mas não da música. Surgiu a ideia de criar algo que eles próprios não conseguiriam executar ao vivo. Não era essa a intenção, mas sim permitir que sua criatividade fluísse sem barreiras. Qualquer som imaginário seria tornado real. E eles tinham ao seu dispor tudo de que precisavam.
Foram criados alter-egos. Não eram mais os Beatles em estúdio, mas sim a Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Uma banda irreal, capaz de executar sons irreais, e que, apesar – ou justamente em função – disso, definiria novas referências para tudo que seria feito na indústria fonográfica daquele ponto em diante.
Para tal, centenas de gravações, overdubs e experimentações foram feitas. O registro de qualquer coisa que se aproximasse da realidade pouco importava, a não ser para gerar material a ser manipulado e por fim transformado em algo além.
The Beatles – Lucy In The Sky With Diamonds. 1967.
Esse enorme amálgama de ousadias e experimentações viu a luz do dia em 1967. Diferentemente do que se possa pensar, foi recebido com um misto de empolgação e desconfiança, pois parte do público e da crítica ainda ansiava por mais do mesmo. Hoje sabemos que mais do mesmo não teria feito história.
A partir desse ponto, músicos e bandas do mundo inteiro passariam a entrar em estúdio para buscar os seus próprios minotauros. Após quase um século de desenvolvimento, a fonografia finalmente deixava de ser apenas registro frio e passava a ser, acima de tudo, criação.
Tal qual em 1877, algo novo, e que em breve se tornaria indispensável, passava a existir.
O mundo criado por Edison nunca mais seria o mesmo.