“- Cientistas mentem, são todos comprados”.
Topei com essa afirmação alguns meses atrás. É o comentário de um anônimo em uma publicação. Não costumo dar muita bola para comentários em grandes portais de notícias. E quem pretender manter a sanidade mental deveria fazer o mesmo J . Mas esse me chamou atenção por se tratar de uma página específica de divulgação científica de um dos institutos brasileiros mais reconhecidos no mundo, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicada (IPEA). Naquele momento, o IPEA divulgava os resultados de sua pesquisa sobre os 10 anos do programa de transferência de renda conhecido pelo nome de Programa Bolsa Família.
Entre a curiosidade e a apreensão resolvi continuar lendo os comentários. Entre poucos elogios e muitas ofensas, não li uma palavrinha sequer sobre a elaboração do trabalho. Nada, absolutamente nada sobre a construção dos dados, o tamanho da amostra, representatividade, etc. O que havia sim, e muita, era raiva dirigida aos pesquisadores. Passada a surpresa inicial, desses meses para cá, dedico algum tempo para ler os comentários publicados nas divulgações de pesquisas. E tenho dado especial atenção para os comentadores. É triste constatar que em diversas publicações de pesquisas muito distintas, mesmo em diferentes áreas do conhecimento, há uma constante raiva direcionada aos pesquisadores e pesquisadoras.
Não bastasse os sucessivos cortes orçamentários que comprometem o futuro da pesquisa brasileira em ciência e tecnologia [1] a meu juízo, assistimos a um processo lento, mas profundo, de perda de credibilidade dos cientistas. Vejam, não se trata exatamente de um sentimento contra a ciência [2], embora contenha alguns elementos de obscurantismo aqui e ali. É, sobretudo, contra os cientistas. Pelo que tenho acompanhado, trata-se, em linhas gerais, da sensação generalizada de que a ciência é realizada por pessoas comprometidas somente em comprovar suas predileções. Nesse sentido, a demonstração de uma tese, elaborada com rigor metodológico e submetida à avaliação de seus pares, dilui-se como apenas mais uma opinião entre as virtualmente infinitas opiniões sobre determinado assunto.
“- Cientistas mentem, são todos comprados”.
Voltemos ao caso inicial que motivou esse texto. A maior parte das ilações afirma que o programa Bolsa Família incentiva que seus beneficiários não procurem outras formas de renda, porque, de certa forma, o governo já estaria lhes pagando uma espécie de salário. Em outras palavras o programa promoveria o desalento [3] entre seus beneficiários além de um custo monumental nas contas públicas. É neste último ponto que a pesquisa “Programa Bolsa Família uma década de inclusão e cidadania” [4] se insere. Realizada pelo instituto mencionado, os dados demonstram que para cada R$ 1 gasto com o programa, obtinha-se um retorno de R$ 1,78 no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.
Esse resultado recebeu grande atenção da mídia impressa, televisiva e dos meios virtuais. Porém, se não foi praticamente ignorada pelo público em geral (apesar da ampla divulgação), a pesquisa, como vimos, foi alvo de muitas críticas. Acredito que tais críticas foram impulsionadas pela recente polarização no debate político brasileiro. O referido programa é associado à determinada política pública de determinado governo, o qual, possui determinada orientação política. Logo, afirmar o sucesso do programa seria afirmar também o sucesso do governo que o propôs. Dessa forma, é correto supor que, em um cenário de polarização, apenas o “lado” que se orienta politicamente a favor do governo daria credibilidade à pesquisa. E o “outro lado”, portanto, tenderia a não dar credibilidade a ela.
Como falei mais acima, a surpresa é constatar que a maioria das críticas realizadas pelo “outro lado” não foi direcionada às considerações do texto. Muitos compartilhamentos em redes sociais, correntes, memes, etc., desqualificaram o instituto que a promoveu. No entanto, as mais duras “críticas” ficaram reservadas para os pesquisadores e pesquisadoras do IPEA. A frase “- Cientistas mentem, são todos comprados, burros, corruptos e vagabundos” sintetiza e exemplifica outras centenas de frases ofensivas.
Olha, eu preciso deixar claro: Essa ofensiva contra os pesquisadores não é uma excentricidade brasileira. Ela vem ocorrendo em outros países, com maior ou menor grau de ferocidade. Mas esse texto ficará concentrado no Brasil porque o objetivo principal é entender a complexidade do fenômeno na terrinha tupiniquim em uma realidade que conheço melhor.
Acredito que essa situação tenha se acentuado porque os cientistas são ridículos.
Hehehe, brincadeira. Desculpe, não resisti. Como disse antes, acredito que a situação de descredibilidade dos cientistas no Brasil tenha se acentuado com a polarização da política no debate público. Seja na família, no trabalho, entre amigos, ou nas redes, pode-se datar que a partir do que se convencionou chamar de Jornadas de Junho 2013, quando a população brasileira se voltou, inicialmente, contra o aumento das passagens do transporte público e, posteriormente, passou a exigir serviços públicos universais e de qualidade (saúde, educação, mobilidade urbana, moradia, todos “padrão-fifa”), a política tornou-se assunto frequente em qualquer espaço coletivo. Esse processo tem recebido o nome de “repolitização do cotidiano”. Entretanto, com a campanha presidencial de 2014, essa muitíssimo benéfica repolitização incorporou uma progressiva radicalização da polarização, dividindo o Brasil entre os “nós e eles”, ou pior, entre “amigos e inimigos”.
E como fica a credibilidade dos cientistas nesse momento? Bem, ela foi capturada por essa polarização. Nesse sentido, uma tese, dissertação, artigo publicado em excelente revista científica, tornou-se a opinião de alguém orientado por alguma corrente política. Não se trata de afirmar aqui que os cientistas são pessoas politicamente neutras. Mas não podemos confundir os interesses pessoais com as considerações de pesquisa do cientista. Muitas vezes, as predileções do pesquisador aparecem como um impulso inicial para tal ou qual tema de pesquisa. Os que gostam de animais podem se interessar em elaborar vacinais mais eficientes, as que se indignam com a pobreza podem dirigir seus esforços para compreender a resiliência da desigualdade socioeconômica no Brasil, aquelas e aqueles que se interessam por computação e pedagogia podem atentar para o uso de computadores e celulares em sala de aula, e por aí vai. As predileções anteriores à construção do objetivo de pesquisa não podem servir como arma para a deslegitimação do trabalho científico. Em especial, porque tal trabalho, antes de ser divulgado, necessita ultrapassar várias etapas, como adequar-se a critérios minuciosos e amplamente aceitos, ter metodologia coerente e transparente, apresentar seus referenciais teóricos, etc. Ou seja, toda pesquisa tem sua qualidade constantemente avaliada pela comunidade acadêmica.
“- Cientistas mentem, são todos comprados”. Como superar essa situação?
Acredito que diminuir a distância entre a universidade e a escola seja um passo necessário. Esse é um mea-culpa importante [5]. Com raríssimas exceções, a universidade está muito afastada do cotidiano das professoras e professores, alunas e alunos do ensino fundamental e médio. Preocupação com os índices de produtividade exigidos pelos organismos de fomento, baixo investimento, necessidade de muito trabalho e dedicação, ou apenas desinteresse, o fato é que os professores universitários encastelaram-se, particularmente nas públicas, tornando-as cada vez mais ensimesmada, enfraquecendo os vínculos com a sociedade de fora dos seus muros.
Em teoria, a universidade pública brasileira fundamenta-se em três pilares: a pesquisa, o ensino e a extensão universitária. Sobre os dois primeiros, somos um país cuja excelência acadêmica é reconhecida mundialmente, oxalá a precariedade infra-estrutural de muitas universidades que vivem sem verbas para manutenção e custeio. Sem dúvida, fazemos muito se levarmos em conta o atual investimento para a ciência e a tecnologia. O terceiro pilar, a extensão universitária, está prevista no artigo 207 da constituição brasileira. É por meio dela que universidade e comunidade interagem intimamente. A extensão é uma ponte. Trata-se do que é ensinado, pesquisado e produzido na academia dialogando em pé de igualdade com a comunidade, fazendo interagir o saber popular construído geração após geração e o saber científico com seu rigor analítico e metodológico. O uso mais intenso da extensão universitária poderia permitir maior democratização, valorização e preservação do conhecimento. E por que isso é importante? Porque a ciência é a coisa mais divertida que existe.
“Cientistas trabalham para caramba. E são muito legais. ”
[1] O SciCast #68, “A Divulgação científica no Brasil, e o #200, “Problemas na Ciência”, falam muito bem sobre esse tema.
[2] Deem uma olhadinha nos textos escritos por Guilherme Ceolin, aqui mesmo nesse portal http://www.deviante.com.br/noticias/ciencia/ciencia-em-crise-parte-1-de-3-o-caso-lysenko/
[3] O IBGE classifica o “desalento” como a pessoa está em idade de trabalhar, porém está desempregada e não está procurando emprego. Para mais informações, acesse: https://www.ibge.gov.br/index.php
[4] http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20408
[5] Confiram o SciCast “Ciência, Política e a Bolha Acadêmica”.
Thiago Brandão. É sociólogo e acredita que o louco só está usando uma metodologia diferente.