Não sei se existe alguém no mundo que goste de ir ao dentista. Eu não gosto. Se pudesse, não iria nunca. A verdade é que certas coisas são necessárias e certas coisas são prazerosas, às vezes temos os dois juntos no pacote, mas isso é a exceção. Na maior parte das vezes, você faz coisas que não gosta porque as consequências de não fazê-lo são piores que o desprazer de encará-las. Por isso, encho meu prato com brócolis várias vezes por semana e vou ao dentista regularmente. Não quero chegar ao ponto de ter que fazer isso, até porque no Brasil não neva o suficiente para termos onde patinar.
Reconheço que hoje a Odontologia está bem mais humana do que na minha infância (e lá se vão mais de trinta anos). Os odontólogos são mais delicados e as técnicas não incluem mais colocar o pé no peito do sujeito para extrair um dente (o dentista que eu frequentava, um militar da reserva, só faltou fazer isso). A única coisa que ainda não mudou foi a mania dos profissionais da área de fazerem perguntas enquanto estão com meia dúzia de instrumentos altamente pungentes mexendo na sua boca escancarada. Você só consegue produzir sons primitivos e guturais, no intuito de ser ao mesmo tempo educado e preservar sua integridade física.
Em uma destas “conversas”, um dentista comentou comigo, que já não tenho mais os quatro sisos, que se eu tivesse nascido alguns anos no futuro, não teria mais este incômodo, pois a espécie humana estaria perdendo os sisos por falta de uso. Ao ouvir aquilo fiz uma careta e pensei: “Charlie, perdoa este povo que não sabe o que diz”.
Vamos começar do começo. Por que ainda temos dentes do siso, dentes do juízo ou, tecnicamente falando, terceiros molares, se eles normalmente não servem para nada? A resposta curta e reta é porque já foram úteis no passado da espécie. A arcada dentária dos outros primatas é maior e mais forte, pois sua alimentação consiste em plantas, raízes e carne cruas. Como vocês sabem, só nós aprendemos a cozinhar os alimentos. O cozimento é um ponto fulcral que torna o ato de mastigar uma costela de porco com barbecue uma dádiva e não um suplício. Isso mudou nossa arcada dentária, diferenciando-a dos outros primatas e mesmo dos outros hominídeos. E isso é algo que devemos ter em mente sempre quando falarmos de dentes e mamíferos.
A dentição é uma das características mais conspícuas do grupo. Nenhuma outra classe de vertebrados tem uma diversidade tão grande na dentição quanto nós, mamíferos. Também, pudera! Mamíferos comem qualquer coisa. Os números variam muito, e vão de nenhum dente até centenas deles (e ainda temos os ornitorrincos. Não esqueçamos deles!).
As formas e funções dos dentes se adaptam à dieta preferencial do animal e recebem nomes diferentes conforme sua posição e usos. Desta forma, temos, na ordem, os incisivos (usados para cortar), os caninos (usados para rasgar ou furar), os pré-molares (triturar) e os molares (triturar mais finamente). Obviamente, alguns animais não têm todos estes dentes de uma vez só, como eu disse, isso varia com o alimento de cada espécie. Assim, carnívoros precisam ter dentes fortes e grandes o suficiente para capturar, matar e dilacerar a carne das presas. Este papel é desempenhado pelos dentes incisivos e caninos. Os pré-molares e os molares são menores e quase não usados, já que os carnívoros quase não mastigam. O estômago que se vire!
Por outro lado, herbívoros precisam ter incisivos afiados para cortar o capim e pré-molares e molares grandes e fortes, para triturar os vegetais ao máximo e facilitar a digestão, já que celulose não é digerível (lembrem-se sempre de mastigarem muito bem quando comerem milho). E os caninos servem, neste caso, para nada, fazendo com que vacas e cavalos tenham um espaço em branco entre os incisivos e os pré-molares (chamado diastema, também presente nos roedores). Então, partindo deste raciocínio, o dentista está certo e este escriba aqui chilicou à toa? As coisas não usadas tendem a diminuir e eventualmente até sumirem? Vamos com calma aí!
A perda ou ganho de estruturas por mero uso e desuso ficou para trás na História evolutiva já na época de Lamarck. A evolução, conforme o tio Charlie propôs, se dá por uma reprodução diferencial daqueles indivíduos com características vantajosas. Ou seja, se alguns habitantes de um determinado local desenvolvem uma característica que aumente seu potencial reprodutivo eles deixam mais descendentes. Estes descendentes, se herdarem a tal característica, também deixam mais descendentes e assim por diante, até que só existam seres na população com a característica vantajosa. Isto persiste até que as condições de existência mudem novamente. Daí, outras características passam a conferir vantagem e o ciclo recomeça. Isso é a história resumida. O processo real é lentíssimo, levando muitas e muitas gerações para se fixar.
O simples fato de não usarmos os dentes do siso ou extraí-los ao causarem problemas não garante que os filhos nascerão sem estes dentes, porque o DNA ainda está programado para fazer crescer dentes do siso e transmitir esta característica. Algumas pessoas naturalmente nascem sem a “sementinha” deste dente. Isso é uma característica genética! Juntando estes fatos, podemos facilmente traçar o seguinte cenário hipotético: pessoas congenitamente sem dentes do siso poderiam ter uma vantagem reprodutiva e deixar mais descendentes, pois o nascimento tardio de um terceiro molar não comprometeria a arcada como acontece normalmente com quem tem os ditos dentes. Assim, estes mutantes conseguiriam se alimentar melhor, teriam menos infecções devido a uma melhor higienização e seriam mais atraentes por não terem a boca toda torta. Com o passar do tempo, os “sem juízo” (acho que é um bom nome…) predominariam na população e depois de muitas gerações, todos os humanos nasceriam sem estes dentes.
Claro que isso não vai acontecer. Não há vantagem reprodutiva potencial nenhuma em ter ou não ter os terceiros molares simplesmente porque temos faculdades de Odontologia e especialistas em Ortodontia. Você não deixa a seleção natural agir pois é relativamente simples corrigir o problema. Basta extrair estes dentes na força bruta e depois usar aparelho ortodôntico para corrigir a arcada. Com certeza, estes procedimentos simples melhoram a capacidade reprodutiva do indivíduo, não só por facilitarem a alimentação e higienização, mas também porque um sorriso metálico fica super charmoso em algumas pessoas.
Então, meu dentista estava errado, de fato. A perda dos sisos até poderia ocorrer por seleção natural, se ainda vivêssemos como nômades caçadores e coletores. Não por falta de uso, mas por causarem problemas com impacto potencial na alimentação, atratividade e aumento nos casos de doenças, diminuindo o número de descendentes. Como subvertemos todos os mecanismos evolutivos usando de Ciência & Tecnologia (uma salva de palmas a elas!), a seleção natural já não age mais como devia. Assim, teremos que nos acostumar a ir no dentista regularmente, mesmo que isso às vezes acabe em uma fenda na língua ao tentar responder como está a sua mãe enquanto estão lidando na sua boca com um bisturi afiado a laser.