Se você não passou as últimas duas semanas entocado em uma caverna ou andando por aí caçando Pokémon você sabe da treta sinistra que está rolando nas Internets. E não estou falando só das redes sociais. A barafunda se espalhou inclusive para a imprensa mainstream. Estou falando do que passou a ser chamado “Caso Bel Pesce” (ou “Empreendedorismo-de-palco-Gate”? Escolham o que lhes agradar mais). Não vou explicar detalhes aqui, vai estar tudo linkado no texto para quem quiser seguir o novelo de linha até sua última ponta, mas segue abaixo um resuminho para contextualizar a coisa.
O famoso blogueiro, escritor, youtuber, comediante tupiniquim-cearense-canadense Izzy Nobre resolveu investigar a vida e obra da Menina do Vale, Bel Pesce, e chegou à conclusão que ela aparentemente vendia uma imagem, digamos, floreada e exagerada de sua vida e de suas realizações. Digo “aparentemente” porque ela está usando seu direito de defesa e rebatendo as acusações (https://medium.com/@belpesce). Como a coisa está ainda em processo de julgamento pelo público, eu não vou emitir nenhum juízo de valor aqui. “Ah, está dando uma de isentão”. Talvez, mas o fato é que eu estou defecando litros para se ela é culpada ou inocente. Não interfere em nada na minha vida. Não curto empreendedorismo de palco e até agora não tenho ídolos que não estejam mortos (por exemplo, Darwin, Mendel, Jobs, Pasteur, etc.). O fato de eu perder um tempo estudando o caso e estar escrevendo sobre isso é porque existe muita ciência por trás de tudo isso. E expôr esta ciência é o meu objetivo aqui.
Primeiramente, gostaria de sinceramente elogiar o nobre colega Izzy (pun intended) pelo rigor com que utilizou o método científico para partir de uma pergunta, elaborar uma hipótese, coletar os dados e chegar a uma conclusão falseando ou confirmando a hipótese. Na verdade, o próprio Izzy coloca no seu texto que fez isso mesmo, usou da lógica dedutiva aristotélica para fazer sua pesquisa sobre Bel Pesce, já que ele não a conhecia. Ao fazer sua pesquisa exploratória inicial, alguns red flags foram levantados, levando-o a formular uma hipótese. No caso, a hipótese foi de que a moça teria enfeitado o currículo para aumentar seu capital simbólico. Aprofundando a coleta de dados, ele encontrou evidências suficientes que pendiam para o lado de confirmar sua hipótese. Para provar que ele não estava inventando os dados, como muitos pesquisadores já fizeram, ele referenciou todas as informações para que os pares checassem as mesmas fontes. A partir do momento que elaborou sua conclusão, ele publicou a pesquisa no seu blog e esperou as críticas e refutações destes pares. Exatamente da mesma forma como se faz em laboratórios de pesquisa em centros e universidades ao redor do mundo. O fluxograma é exatamente o mesmo, como eu expliquei em outra ocasião aqui no Deviante. A diferença é que ele não submeteu um artigo com dados e conclusões para uma revista científica, o qual seria lido, criticado e aceito ou rejeitado baseado em dois ou três pareceristas. Ele soltou o Kraken na Internet para que milhões de pessoas minimamente letradas no idioma de Camões pudessem tirar suas próprias conclusões. Fazendo isso ele aprontou a maior confusão, como diria aquele velho locutor de propaganda da Sessão da Tarde.
Uma galera passou a atacar ferozmente a (ex) Menina do Vale, muitos que eram fanboys, seguiam seus passos e se diziam inspirados na sua história, passaram a vê-la como uma pilantra, charlatã e aproveitadora da fé alheia. Ou seja, sentiram-se traídos e passaram a rejeitar tudo o que ela quisesse a partir de então dizer para se defender. Por outro lado, uma outra turma ignorou todas as evidências e passou a defender a moça, com igual ferocidade, partindo para ataques pessoais contra o nobre blogueiro, chamando-o entre outras coisas de invejoso, hater, machista, sexista e até de racista (!). Atacar o mensageiro sem refutar a argumentação contida na mensagem é o caso clássico de falácia lógica chamada “argumentação Ad Hominem”. Este tipo de ataque piora a situação, pois qualquer pessoa com um mínimo de senso crítico percebe a tática e passa a rejeitar ainda mais quem se deseja defender. Mas, perguntam alguns, por que alguém defenderia com tanta garra uma suposta fraude, mesmo havendo evidências sólidas de que a história realmente pode ter sido mal contada? Aí entram duas teorias da psicologia comportamental que explicam com nosso cérebro primitivo ainda funciona.
A primeira é o chamado “Efeito Manada”, que nada mais é do que o popular “Maria-vai-com-as-outras”. Ou seja, aquela tendência de abrir mão de sua individualidade para seguir o pensamento e comportamento de um grupo a que se deseja pertencer. Este efeito foi experimentalmente comprovado por Solomon Asch no começo dos anos 50, no que ficou posteriormente conhecido como Conformidade de Asch ou Paradigma de Asch. O Sr. Solomon conduziu um experimento em que mostrava para oito pessoas dois cartões, sendo que no cartão 1 havia uma linha desenhada e no cartão 2 havia três linhas de diferentes tamanhos. A tarefa consistia em apontar qual linha do cartão 2 tinha o mesmo tamanho da linha do cartão 1. Era um experimento extremamente simples, já que as linhas diferentes daquela original eram muito maiores ou menores, não tinha como não acertar de cara a linha similar. O detalhe é que dos oito voluntários, sete eram atores que tinham a função de responder errado todas as vezes. O chocante do experimento é que aquele voluntário que não era ator passou a errar a linha correta conforme o grupo ia dando suas respostas equivocadas, mesmo que sozinho tivesse acertado em 99% das vezes. Ou seja, sua certeza inicial passou a ser posta em dúvida porque a pressão do grupo assim o fez. Mesmo que no seu íntimo ele soubesse que aquilo não era correto, os exemplos alheios o induziram a agir de forma a não contrariar a massa. Ele passou a fazer parte de uma manada abandonando sua individualidade. Evolutivamente, isso faz sentido, uma vez que em épocas primitivas, quem se desgarrasse muito do bando, teria chances muito reduzidas de sobrevivência e de passar seus genes adiante. Por mais que hoje tenhamos recursos suficientes para que nossa sobrevivência e bem-estar não dependam de vivermos sob a tutela de uma manada, este comportamento ficou impresso indelevelmente em nosso DNA e molda nosso cérebro primitivo até hoje.
Somando-se ao Efeito Manada, temos igualmente acoplado em nosso software mental paleolítico uma rejeição quase que visceral à perda. Temos mais medo de perder alguma coisa que já possuímos do que iniciativa de buscar algo que pode ser melhor. De novo, esta teoria é muito bem captada no famoso ditado popular “mais vale um pássaro na mão que dois voando”, mesmo que a chance de pegar os outros dois sejam iguais as de perder o que já se tem. É a famosa Zona de Conforto: talvez se eu resolvesse tentar outra coisa pudesse conseguir algo melhor, mas já que eu tenho as minhas coisinhas aqui, deixa como está. Eu só quero evitar a fadiga! Esta hipótese foi experimentalmente testada pelos Prêmios Nobel Amos Tverski e Daniel Kahneman ainda nos anos 70 e serve para explicar muita coisa em diversas áreas do conhecimento e comportamento humano.
Juntando estas duas teorias comportamentais, podemos explicar muitas das atitudes da legião de fãs da Menina do Vale. Como no começo existia muita gente, alguns bem graúdos por sinal, tanto do empreendedorismo quanto da mídia falando muito bem e citando a Bel Pesce como exemplo, era totalmente natural que a maior parte das pessoas que estava com a digníssima mentalidade de empreender virasse seu fã e usasse sua história de vida como modelo. Isto é totalmente natural, todos nos inspiramos em alguém e nos fortalecemos com histórias de vida de pessoas que deram certo. Isto se chama empatia e tem a ver com os neurônios espelho. Os fãs estavam corretíssimos em seguir a manada, todo mundo estava replicando a mesma coisa, logo só poderia estar certo. Todavia, a partir do momento em que alguém resolveu pensar fora da caixa e ir mais a fundo na história (resolveu ser a cioba desgarrada do cardume), descobriu-se que na verdade a história poderia não ser bem aquela que era contada e re-contada. Diante dos fortes indícios de que inverdades foram ditas e feitas, muita gente engoliu sua decepção e aceitou a perda. Mas uma parte não aceitou esta perda e passou a negar e racionalizar que não poderia ser verdade, num típico processo clássico de aceitação do luto, o qual por enquanto está nas fases de negação e raiva (e que raiva!). Estas pessoas estão no modo Fox Mulderiano “Eu quero acreditar!” Estas pessoas estão erradas? De certa forma não. Elas estão seguindo seu lado mais selvagem e ancestral do cérebro, aquele que foi extremamente útil para que chegássemos até aqui e hoje tivéssemos isso, mas que ainda pensa que estamos fugindo de tigres-dentes-de- sabre.
Só para finalizar, gostaria de mencionar algumas das lições aprendidas com um de meus pensadores favoritos da atualidade. Corrigindo uma de minhas frases anteriores, se existe alguém vivo do qual sou fã este alguém é Nassim Nicholas Taleb e seus Cisnes Negros e Antifrágeis. Taleb descreve no seu livro “A Lógica do Cisne Nergro” como fatos totalmente imprevisíveis e inesperados mudaram, mudam e continuarão mudando o mundo. Ele chamou estes acontecimentos de Cisnes Negros, em alusão ao fato de que até a chegada dos europeus à Austrália, pensava-se que todos os cisnes eram brancos. Um bom exemplo de Cisne Negro é o surgimento e massificação do acesso à Internet. Nenhuma obra de Ficção Científica antes dos anos 90 conseguiu prever isso. Pensava-se em carros voadores, hoverboards e gravatas duplas, mas não Internet e, no entanto, nada está mudando tanta coisa em tão pouco tempo quanto este simples invento. No caso da Bel Pesce, a campanha de crowdfunding mal-sucedida para abrir uma hamburgueria gourmet disparou no nobre blogueiro Izzy a vontade de saber quem era uma das futuras sócias do empreendimento e aí fez-se a confusão (Sessão da Tarde feelings, again). Este evento, na vida e carreira da Bel Pesce, pode ser considerado um Cisne Negro. Nada mais será igual a partir daqui, pelo menos neste micro-cosmo específico. Na minha vida, continua tudo igual: muita conta para pagar e muita merda para resolver. Na esteira da teoria do Cisne Negro, Taleb escreveu o seu próximo livro, em que ele desdobra o conceito de Antifragilidade como uma forma de você se defender dos Cisnes Negros negativos e aproveitar as oportunidades dos Cisnes Negros positivos.
Começando do começo, segundo Taleb as coisas podem reagir à perturbações de três diferentes formas: coisas frágeis se quebram, coisas robustas não se alteram e coisas antifrágeis se fortalecem. Ele deixa bem claro em sua obra que o contrário de frágil não é robusto nem resiliente, porque estes dois termos significam ou resistir ou voltar a seu estado anterior, nunca ficar melhor. Por isso ele teve que criar um neologismo que signifique exatamente o oposto de fragilidade, a antifragilidade (antifragility no original em inglês). Algo antifrágil prospera e se fortalece na adversidade. Exatamente isso acontece com a informação em nosso mundo conectado digitalmente. Se você tenta censurar ou proibir alguma coisa na Internet, esta coisa aí é que se propaga e chama a atenção. Às vezes coisas pequenas que passariam em branco tomam dimensões absurdas quanto mais se luta contra elas. Por isso que em um primeiro momento a Bel Pesce ter ameaçado juridicamente o nobre blogueiro foi uma tática equivocada, só reforçou ainda mais curiosidade das pessoas em saber o que estava acontecendo. Bem faz ela em se defender e tentar rebater as dúvidas com provas concretas, ainda que não totalmente convincentes. Censura e ameaças judiciais nesta época em que tudo passa pela rodovia da informação são uma péssima tática. Você pode até ganhar o processo e conseguir uns caraminguás de indenização, todavia o estrago para a imagem para quem vive disso já está feito e em muitos casos se torna irreversível.
Para finalizar, gostaria de dizer mais uma vez ao Izzy Nobre que o trabalho de investigação que ele fez foi uma grande lição que deveria ser aprendida por todos que desejam emitir opinião sobre algo. Em qualquer coisa que se faça, sempre existe uma história real e suas versões. Por mais que a versão seja melhor, insistir nela e esconder a realidade pode dar muito ruim. Um dia a casa cai e as consequências podem ser devastadoras. Izzy Nobre não tem de quatro a seis diplomas, na verdade ele droped out todos os cursos universitários que começou (curso de paramédico conta aqui? Pergunto porque não sei e não quero ser injusto). Todavia, ele é um nerd, curioso por definição, aquela pessoa que em essência não se contenta com as coisas superficiais e rasas, quer sempre saber como tudo funciona. Que tenhamos mais deste tipo de atitude na nossa vida cotidiana, isso está fazendo falta no mundo atual.