Oi, pessoa! Bom aí? Bom aqui!
Sob a inspiração de Cazuza, e preocupada com o contexto que estamos vivendo, eu resolvi falar sobre ideologia. Com o grande acesso que temos à informação, hoje, vários conceitos são usados indiscriminadamente, sem um cuidado quanto ao seu real significado. Chegam até a ser usados em contextos em que não fazem o menor sentido, o que faz com que os seus significados se esvaziem. Daí a importância que vi em falar sobre ideologia, esse conceito tão complexo e, às vezes, tão mal compreendido.
Somos seres sociais, certo? Então, quando nascemos (em determinado momento histórico), entramos em contato com uma determinada cultura. Nessa cultura aprendemos o que é certo e o que é errado, o que podemos fazer e o que não podemos e, então, reproduzimos esse aprendizado. De que maneira? Quando, por exemplo, vemos a corrupção no país, nos indignamos porque sabemos que roubar é errado.
Mas existem construções que são muito mais sutis. Aprendemos, por exemplo, o que é feio e o que é bonito.
Debbie, discordo! Isso é gosto! Cada um tem o seu!
Não estou tirando totalmente o seu gosto da história, mas estou dizendo que seu gosto e sua forma de ver o mundo foram influenciados por toda uma construção social, cultural e histórica. São várias as influências que a gente tem ao longo da vida: a família, a escola, a igreja, os filmes e seriados, os jornais, as propagandas… Vou dar outros exemplos.
Quando aparece uma família feliz em propagandas, quase nunca há velhos. Aliás, na época do natal, sim. Há muitos avós no natal. Ops… nas propagandas de natal. Propagandas em que o foco são pessoas velhas, normalmente, são propagandas de produtos de beleza para a pessoa aparentar ser… mais jovem… ou menos velha. Quase não há também pessoas gordas. Em novelas, pode perceber que, quando existem, são os personagens engraçados. Nunca são galãs ou heroínas. Na nossa sociedade, ser velha é ruim. Na nossa sociedade, ser gorda é ruim.
E o que diabos isso tem a ver com ideologia?
Estou chegando lá! São esses consensos, essas aceitações de verdade pela maioria da população que chamamos de hegemonia (mais um conceito aí). Mas quem decidiu essas verdades?
Uai, Debbie? Mas ser velho e gordo é ruim mesmo! Pergunta para qualquer um!
Cuidado! Não basta se basear na sua realidade para fazer afirmações sobre verdades. Os velhos no oriente são vistos como sábios. As pessoas os procuram para saber sobre a vida, para pedir conselhos. São eles que contam histórias e ensinam. Então, não. Não é uma verdade. É uma construção social. O padrão de magreza como beleza também não existiu sempre.
Tem um livro muito bom da Lilia Moritz Schwarcz, O Espetáculo das Raças, que mostra como, no final do século XIX, era cientificamente provado que o negro era mais propenso a cometer crimes do que o branco. Ela mostra também que existia uma expectativa do governo de erradicar os negros do Brasil até o ano de 2012. Hoje sabemos que a ciência da época estava apenas corroborando para uma construção social, e ideológica, de que ser negro é ruim.
Agora acho que fica mais claro definir ideologia. Para VanDijk, que é um teórico que eu amo, a ideologia é uma consciência (essa palavra é chave!) de determinadas práticas sociais, que determinado grupo social tem, que vão servir para os interesses desse mesmo grupo. Ficou claro o que eu disse acima, sobre a construção de ‘ser negro é ruim’ ser ideológica? Existe um grupo social, no poder, que se beneficia dessa construção.
Debbie, então, ter ideologia é ruim! Por que diabos o Cazuza queria uma para viver?
Como eu disse antes, aprendemos, nas construções sociais e históricas, no nosso dia-a-dia, verdades compartilhadas, consensos, que estão impregnados de ideologiaS. Elas fazem parte da nossa vida. O que importa é a consciência de que essas ideologias existem. Assim, é possível tirar o véu que nos cega para essas verdades construídas e, assim, ajudar a construir ideologias que visem à construção de um mundo melhor, mais igualitário.
Ou, como diz um dos meu músicos favoritos, Jorge Drexler, colocar o véu semitransparente do desassossego para conseguir ver o que antes estávamos empenhados em não ver: a vida é mais complexa do que parece:
Tomar consciência dessas ideologias e das construções sociais, nos tira da situação de pessoas que estão simplesmente passando pelo mundo, para pessoas que estão construindo, interferindo no mundo em que vivem. Eu diria que era por isso que Cazuza queria uma ideologia para viver… Ele critica “aquele garoto que ia mudar o mundo” e que “agora assiste a tudo em cima do muro”:
http://www.youtube.com/watch?v=UioudOtAsCQ
As ideologias, então, permeiam todos os discursos à nossa volta. Quando alguns deputados defendem uma “escola sem partido”, dizendo que não se deve ensinar ideologia na escola, por exemplo, eles estão tendo um posicionamento ideológico de permanência das ideologias vigentes. Eles não querem que as pessoas aprendam sobre ideologia para que não tomem essa consciência e, consequentemente, não mudem a ordem, o status quo, da sociedade atual.
Debbie, mas desse jeito que você está colocando fica parecendo uma luta de bem contra o mal. Parece que quem está no poder é sempre ruim e que a oposição sempre estará certa.
Concordo que pode parecer que estou dizendo isso. Mas não é exatamente isso… O que quero dizer é que todo, TODO discurso está permeado de ideologia. O lado bom, ou certo, para mim é o lado que busca uma mudança na sociedade de forma a diminuirmos a desigualdade. Tomar essa consciência significa não seguir cegamente um ou outro viés ideológico, é identificar quais são os interesses por trás daqueles discursos, é identificar quem se beneficiará com aquilo, porque, muitas vezes, o discurso é de melhora da economia, ou de preocupação social, ou a favor da moral e dos bons costumes. E Tudo isso é lindo! São todas coisas positivas. Certo?
Nem sempre. É preciso identificar o que está por trás do óbvio. Quanto menos óbvia a ideologia, mais atento temos que ficar. É fácil ver que o Bolsonaro, por exemplo (que é evangélico, que já se posicionou contra homossexuais), quando defende a família, ele está defendendo um grupo de pessoas, mas está excluindo outros.
Agora vejamos uma situação que não é tão óbvia. Se eu te perguntasse: “como seria a manchete de um jornal sobre estupro?”, você provavelmente me diria algo como:
‘Turista americana foi estuprada oito vezes na van do terror’
Ou
‘Adolescentes sofrem estupro e espancamento no Piauí’
Ou
‘Estudante da UnB sofre tentativa de estupro perto do campus de Planaltina’
Enfim, a construção linguística dessas manchetes coloca a pessoa estuprada no foco do estupro e não o estuprador. Percebem? Isso pode passar (provavelmente passou) despercebido para muita gente. Uma análise linguística me permite ver isso e ter consciência do quanto essa construção é perigosa. Colocar o foco na vítima corrobora com o discurso ideológico de tirar a responsabilidade de quem fez. O estuprador raramente aparece nas manchetes. É como se ele não existisse ou tivesse menos importância. Vocês já tinham percebido isso?
O nosso dia-a-dia está permeado dessas construções que passam batidas, que são vistas com tanta naturalidade que nem paramos para pensar sobre elas. É nele que está o perigo: no discurso das escolas, das propagandas, das novelas, nas coisas mais cotidianas da vida…
Um leitor me questionou sobre a adequação do uso de x ou @ para não usar o masculino quando englobo homens e mulheres, por exemplo, professorxs/professor@s, sendo ele favorável ao surgimento de um gênero neutro. Minha resposta é que esse é um posicionamento ideológico, na falta do gênero neutro. Entendo que há um grupo que se beneficia e, consequentemente, outros que são prejudicados pelo uso do masculino plural dominante. [atualização: parei de usar depois de terem me chamado a atenção que fica ruim para a leitura de deficientes visuais]
A nossa sociedade é machista e a língua reflete isso. Quando um professor pede que os alunos façam uma fila, todos irão, meninos e meninas. Toda vez que falamos do coletivo, se há UM homem entre 200 mulheres, usa-se o masculino plural. A possibilidade de um homem se encaixar em um plural feminino é, eu diria, ínfima, só para não dizer nula. Mas todas as mulheres são ensinadas a se encaixar no plural masculino dominante ‘na língua’. Esse é um dos processos de desconstrução mais difíceis na minha opinião, a consciência linguística. Por isso tento inserir ou o feminino como dominante, ou citar os dois, feminino e masculino, ou usar a estratégia do x / @, que uma escrita menos formal permite.
Espero que com esse texto eu tenha te colocado o véu do desassossego, e tenha conseguido deixar mais claro o conceito de ideologia e a importância de pensarmos de onde vêm as nossas verdades absolutas e quem se beneficia delas.
Até a próxima!
Referências:
Vandijk, T. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.
Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças : cientistas, instituições e questão racial no Brasil — 1870-1930 —. São. Paulo : Companhia das Letras, 1993.