Para aqueles que convivem com adolescentes, um assunto parece ser comum: entrar na universidade. Muitas vezes ouvimos, e por tantas outras reproduzimos, a ideia de que a decisão de qual curso escolher e onde cursar são determinantes – uma decisão tomada aos 17/ 18 anos. Aqui no Brasil, a palavra ENEM já causa tremores e calafrios em muitos estudantes – alguns que sequer chegaram ao ensino médio. Em outros países, como nos Estados Unidos, a pressão é menos específica, mas perdura o ensino médio todo, já que as notas de provas “normais” contam também. Enquanto por aqui muitos questionam a padronização e massificação da educação representada por uma prova muitas vezes conteudista e desnecessariamente cansativa e estressante, nos EUA o processo de entrada na universidade envolve tantas variáveis e segredos que Harvard está sendo processada por isso.
Como funciona por lá
Nos Estados Unidos, os alunos têm seus resultados acadêmicos registrados ao longo dos anos, alguns pupilos acabam fazendo cursos mais avançados em determinadas áreas de estudo (inclusive substituindo matérias escolares avançadas por cursos básicos de nível universitário). Todos devem escolher atividades extracurriculares que vão desde esportes a marcenaria e cursos de idiomas. A fim de entrar em qualquer instituição de ensino superior, estudantes se submetem a um processo seletivo no qual a nota alcançada em uma prova padronizada (o SAT, quase equivalente ao ENEM daqui), redações e textos produzidos para cada universidade, entrevistas com recrutadores e análise de currículo escolar e extraescolar são levados em consideração.
Este pode parecer um sistema mais justo, já que avalia o aluno como um todo e por um período de tempo maior, contabilizando traços de personalidade que na imensa maioria das vezes não estão refletidos nos resultados das provas de múltipla escolha. Porém, o sistema coloca nos alunos uma pressão de perfeição e montagem de currículo que muitas vezes antecede o ensino médio (e até mesmo o fundamental). Isso acontece porque as notas mensais/ bimestrais são levadas em conta, mas a dificuldade da escola na qual o aluno está matriculado e a comparação com seus colegas de classe também são ponderados. As atividades extracurriculares têm grande peso na análise do seu perfil, mas existem hobbies mais ou menos “interessantes” para o processo. Isso faz com que o aluno esteja constantemente focado no grande prêmio que é “uma carta de aceitação” para uma universidade de renome até mesmo quando ele escolhe o que fazer com seu tempo livre, uma atenção que começa muitos anos antes de ele sequer terminar o ensino médio.
E aqui é crucial fazer um adendo: a pressão dos pais muitas vezes só alimenta essa trajetória “ao infinito e além”. Como a escola na qual o filho está matriculado conta muito, os pais se preocupam em escolher escolas “orientadas para a universidade” desde muito cedo – e até mesmo desde o maternal e jardim de infância, já que estas garantem acesso a escolas fundamentais mais difíceis e assim sucessivamente. Muitas famílias têm gerações e mais gerações formadas nas mesmas universidades, o que só aumenta a pressão sobre o adolescente que ainda está na escola.
O que o processo contra Harvard tem a ver com isso?
O processo de seleção de cada universidade é uma enorme caixa preta: cada instituição tem seus valores, objetivos e métodos de avaliação – e dá a cada um o peso que lhe achar conveniente. As universidade mais tradicionais e disputadas dos Estados Unidos chegam a rejeitar 95% dos candidatos que se inscrevem, mas nunca revelam exatamente o porquê. Este ano, Harvard está sendo processada por supostamente preterir alunos de origem asiática, mesmo quando estes tinham notas altíssimas e currículos incríveis. O grupo acusando a tradicionalíssima universidade – o Students for Fair Admissions (Alunos a favor de admissões justas, em tradução livre) – quer saber por que alunos americanos de origem asiática não foram aceitos na universidade quando candidatos de outras etnias com currículos mais fracos o foram. O processo ainda está no começo, mas os holofotes já estão menos voltados para a sentença da juíza e mais para a caixa preta que se abre.
Ao ser convocada a mostrar alguns dos segredos de seu escritório de admissão, Harvard alegou que apresentar todos estes dados na corte era como “revelar a receita da Coca-Cola”. Mas, para garantir a melhor defesa, a universidade foi obrigada revelar alguns pontos relevantes de seu processo seletivo. Por exemplo, alunos de áreas rurais e com histórias de vida que refletem dificuldades (como jovens imigrantes ou famílias com poucas condições econômicas) têm uma certa preferência, assim como a “lista do reitor” com nomes de parentes de grandes doadores ou ex-alunos ilustres. Mas, para mim, o grande x deste caso está na revelação de quais traços de personalidade são considerados interessantes e atraentes aos examinadores. Harvard deu a entender que estudantes cujas cartas de recomendação, entrevistas e redações indicam que eles sejam “engraçados”, “interessantes” e “maduros” são atraentes aos olhos dos avaliadores. Aqueles que são “padrão”, “senso comum” e “mais do mesmo” tendem a ser preteridos.
E você pode perguntar por que eu vejo um problema tão grande nisso? Porque uma notícia de um juizado de Boston me levou a escrever esse texto? Ou porque eu, bem aqui no Brasil, me importo com os quesitos de seleção de Harvard? Porque trazer a tona todo o processo, incluindo características de personalidade, vai levar a mais e mais pais, alunos e “consultores” a tentar criar o aluno perfeito. Aqueles que almejam entrar em universidades de elite, como Harvard, tendem a se esforçar para obedecer o padrão, custe o que custar, e, ao apresentar ao mundo quais habilidades ou características são as preferidas da comissão avaliadora, abre-se a porta para que, além dos currículos acadêmico e extra curricular, a entrada na universidade comece a moldar também a personalidade dos alunos. A estes adolescentes, cada vez mais deixa de ser interessante explorar o mundo à sua maneira ou tentar ser a melhor versão de si mesmos, já que o objetivo é ser “padrão Harvard”. Isso transforma estudantes, professores, consultores, psicólogos e toda a equipe que deveria ajudar na formação de um ser humano em grandes máquina padronizadoras – que agora podem até mesmo influenciar quais traços de personalidade são “preferidos”.
E, mesmo que no Brasil não tenhamos Harvard nem um processo de seleção sequer remotamente similar ao deles, não é exatamente isso que já acontece aqui? A cada prova de ENEM, os “especialistas” destrincham mais um pouco da prova, descobrem mais uma habilidade que está sendo testada, desenvolvem mais uma técnica de maximizar os resultados. Todos esses alunos, essa miríade de jovens seres humanos, que deveriam estar sendo educados para se descobrirem e descobrirem o mundo estão sendo todos medidos pela mesma régua. E a cada ano que passa, sabemos mais sobre a régua, sobre como ela mede, de que tipo de estudante ela gosta. E a cada ano formamos mais máquinas de decorar fórmulas e fazer provas e menos cidadãos conscientes, menos jovens engajados com o mundo ao redor, menos curiosos.
Eu não sei vocês, mas minha ideia de educação passa por muito mais do que criar pessoas capazes de completar uma prova em três horas e meia ou com certos traços de personalidade que favorecem bons resultados nessas provas. Se tudo for padronizado, estaremos tendendo mais a um clipe do Pink Floyd do que a um sistema educacional de verdade – independente de qualquer resultado no ENEM, IDEB ou o Pisa. A partir do momento em que a escola se preocupa mais com o ângulos de um triângulo do que com a inteligência emocional dos seus alunos, quando determinados traços de personalidade e comportamento forem “preferidos” e “reproduzidos” a fim de garantir mais resultados positivos no ENEM, a educação e formação dos alunos, ou melhor desses seres humanos em crescimento, estará sempre incompleta. A escola deveria ser um espaço de crescimento, descobrimento pessoal e do mundo, curiosidade sem limites, um espaço seguro para falar e ser ouvido, mas infelizmente não é. Não é, porque tantas e tantas escolas se preocupam em ensinar a passar nas provas e não a entender e questionar o mundo. Não é, porque existe uma porta no final do túnel e só passa por ela os alunos que são do formato que ela quer.