Enfim chegou o fim do ano. Com ele, chegou também o fim das provas finais, artigos, trabalhos e tudo que preocupa o universitário. É o momento de alívio dos estudantes. E é isso todo o ano. Reclamação sobre pressão e estresse é comum a todo estudante. Mas, afinal, o que a ciência diz sobre isso? A vida do universitário está tão difícil assim?
Um texto publicado (e bastante compartilhado) pelo jornal da Universidade de São Paulo abordou o assunto argumentando que as faculdades seriam a causa de níveis de estresse perigosos à saúde. O estudo, segundo o que consta no jornal, foi conduzido da seguinte forma: um grupo de universitários foi entrevistado e 90% deles reportaram algum tipo de estresse. Sendo assim, segundo o autor, as evidências permitiriam concluir que muitas vezes as universidades se transformam em verdadeiras “máquinas de moer gente”. Esse tipo de pesquisa parece comum ao tema, em 2007 já tínhamos pesquisa semelhante sendo noticiada. E, embora pareçam interessantes, há falhas consideráveis em suas inferências.
O grande problema é que esse tipo de pesquisa não serve para concluir muita coisa nesses casos. Em primeiro lugar, correlação não implica causalidade – sim, de novo isso. É uma frase batida, mas novamente negligenciada para chegar ao resultado desejável ou porque a correlação parecia obviamente justificar a causalidade. Repare que, com base nos estudos publicados, é provável que a gente consiga uma estatística como: “90% dos estudantes entrevistados comem carne vermelha”. Usando o mesmo método dos autores, chegaríamos a conclusão de que a faculdade é o que faz com que o aluno coma carne vermelha. Um absurdo, mas repare que a metodologia foi exatamente a mesma.
Além do problema correlação vs. causalidade, não sabemos a diferença no nível de estresse isolando as características dos indivíduos. Se considerarmos a idade, muda algo? E condições socioeconômicas? Dos 10% não estressados, há alguma característica em comum e diferente do outro grupo? Não seria importante comparar os resultados com o de pessoas fora do ambiente universitário?
Se você não entendeu os questionamentos, é simples: suponha que, na pesquisa da USP, dos 90% que apresentaram altos níveis de estresse, 95% estão na faixa etária de 25 a 30 anos e dos 10% restantes, 99% têm entre 30 e 35 anos. Nesse caso, parece que idade é um fator mais decisivo para o estresse. Se 90% dos alunos estressados estiverem em condições socioeconômicas menos favoráveis que os demais, então esse será um fator decisivo. E se pessoas de perfis semelhantes aos entrevistados, mas que não frequentam a faculdade, também apresentarem altos níveis de estresse, então o problema será outro. Talvez, o estilo de vida atual.
Com esses erros básicos sendo cometidos, já dá para imaginar o sentimento de quem estuda estatística ao ler as conclusões desses estudos…
“Ah, então você acha que a faculdade não causa nenhum estresse? É isso?”
Com certeza não acho. Por isso corri atrás do assunto no Google Acadêmico e em algumas revistas científicas. Claro, me deparei com muito conteúdo que tinha a mesma abordagem que critiquei no início desse texto. Porém, depois de um tempo fuçando, eis que surge uma luz. Um estudo recente realizado em Flanders, na Bélgica, tinha as respostas às questões levantadas no início desse texto.
O estudo é mais requintado logo na amostragem. Em sua busca por identificar a influência da universidade nos níveis de estresse, pesquisadores estudaram indivíduos de três grupos: estudantes de doutorado (n=3.659), pessoas com alto grau de escolaridade na população como um todo (n=769) e empregados com alto grau de escolaridade (n=333). Esta seleção permitiu identificar se somente os estudantes estão apresentando altos níveis de estresse, ou se esse sintoma é comum aos três grupos.
A identificação do fator estresse também foi mais robusta. A pesquisa utilizou uma versão do General Health Questionnare que contém 12 itens que buscam identificar diferentes níveis de estresse. Perder o sono por causa de preocupações e não conseguir tomar decisões são exemplos de itens do questionário. Para separar os distintos níveis de estresse, divisões quanto ao número de itens assinalados foram feitas: GH2+ (presença de ao menos 2 sintomas) correspondia a estresse psicológico; GH4+ (presença de ao menos 4 sintomas) foi atribuído a distúrbios psiquiátricos comuns (e.g: depressão).
Conforme expliquei no início, características dos indivíduos podem influenciar nos níveis de estresse. Por exemplo, uma pessoa de 20 anos pode ser mais propensa ao estresse do que uma de 35 (e vice-versa). Além disso, características intrínsecas, como ambição e interesse pela academia, também podem ser fatores importantes. Por esses motivos, achei adequado o desenho do estudo de Flanders. Fatores como idade, sexo, filhos e casamento, mais comuns a maioria dos estudos, foram controlados. Adicionalmente, variáveis externas como ter ou não uma bolsa fornecida pela universidade também foram consideradas. Outras características, intrínsecas aos indivíduos, como “estilo de liderança” também foram incluídas.
O resultado foi que estudantes de programas de doutorado apresentaram níveis de estresse mais elevados que os demais grupos. Utilizando suas diferentes métricas, o estudo foi capaz de concluir que os universitários tinham 2,4 mais chances de apresentar algum distúrbio psiquiátrico comparado com o grupo das pessoas com alto grau de escolaridade como um todo; e 2,8 mais que o grupo de empregados com alto grau de escolaridade. Ou seja, a universidade é sim a causa de altos níveis de estresse. Ao menos em doutorandos.
Claro, há várias ressalvas a serem feitas. O estudo só contemplou estudantes de doutorado, que provavelmente passam mais apuros que estudantes de graduação. Além disso, a amostra é pequena e não tão bem distribuída entre as diferentes disciplinas, o que pode causar algum viés. Também não é possível dizer se os resultados seriam iguais quando extrapolados ao Brasil – eu apostaria que sim, mas teríamos que testar essa hipótese. Enfim, nada é perfeito, mas o estudo já foi bem longe. E é preciso reconhecer sua relevância.
A conclusão trivial é que estudantes estão sofrendo por estresse, resultando em depressão e até suicídios. Se o estresse e a consequente perda na qualidade de vida não forem motivos suficiente para preocupar alguns, lembrem-se de que uma das consequências são os custos com saúde. Aceitar esse estresse como algo normal é ir na contramão de tudo que buscamos quando conscientizamos pessoas a não fumarem ou incentivamos qualquer tipo de medicina preventiva. Por fim, é importante lembrar que esses doutorandos são uma das principais fontes de avanços científicos que tivemos ao longo do tempo. Quanto mais as universidades forem fontes de estresse, menor o incentivo ao estudo e, futuramente, a uma vida dedicada à pesquisa. Ou seja, menor será o número de descobertas que poderiam resultar em ganhos a todos, universitários e não universitários.
E você, leitor Deviante? Aliviado com o fim do ano letivo? Passou por muitos perrengues na faculdade? Compartilhe suas histórias conosco.
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Fontes das imagens:
http://www.iran-daily.com/News/199318.html
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