Notas importantes para iniciarmos nossa leitura

Por mais estranho que pareça, o termo correto, em português, para se referir ao fenômeno que apresentarei aqui é hacktivista, ou seja, aquele que participa do hacktivismo. Eu sei, soa muito estranho… sempre leio a palavra pensando em raquitismo e isso é péssimo. Como na origem inglesa o termo usado é “hacktivist” e “hacktivism”, então, hoje vou escolher preservar a tradução certa ao invés de utilizar o neologismo nacional mais comum hackerativismo – que eu, particularmente, prefiro muito mais. Mas vida que segue, nem sempre a gente ganha! rs

Aproveitando o parêntese, gostaria de estabelecer também dois pontos de partida para avançarmos com esse lindo barco chamado “análise sociológica”: (1) é necessário descrever (mesmo que de forma simples) categorias ou conceitos que pareçam muito familiares, isto é, supostamente conhecidos por todos já que estariam “dados” na realidade; e (2) se faz fundamental o esforço de definir as diferenças entre categorias ou conceitos mais ou menos similares, porém que assumem sentidos bem distintos quando postos em prática no mundo social.

Sem mais delongas… aumenta o som e toca o barco!

Pra começo de conversa, precisamos entender que o hacktivismo é um componente da chamada Cultura Hacker, uma subcultura que envolve indivíduos engajados não apenas em escrever e operacionalizar códigos de computador, mas que curtem ultrapassar as limitações de sistemas e softwares programados com o objetivo de produzir respostas criativas e originais para a questão da inovação e do aperfeiçoamento virtual. Segundo o Jargon File, conhecido como “O Dicionário Hacker” (um glossário que reúne termos e gírias usados por programadores), hacker é

“uma pessoa que gosta de explorar os detalhes dos sistemas programáveis e alargar suas capacidades, em oposição a maioria dos usuários que preferem aprender apenas o mínimo necessário” [1].

Esta classificação teria surgido nos anos de 1960, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), através do Tech Model Railroad Club (TMRC), uma organização estudantil a qual se atribui certo pioneirismo na criação e difusão das primeiras manifestações da cultura hacker nos Estados Unidos. Eles também tinham um “quê” de humor e trollagem, e usavam os computadores da universidade para pregar pequenas peças.

Já com a definição de hacker em mente, é possível perceber que existe um esforço de quem faz parte desta cultura em se distanciar da imagem dos “burladores da segurança digital” (security breakers) muito associada aos hackers em geral, principalmente quando são notícia na mídia. Nos sites e nas páginas da Wikipédia em inglês sobre o assunto, se propõe manter tais grupos separados, utilizando as palavras crackers ou security hacker para se referir aos programadores que “apenas quebram” as barreiras de proteção de dados para fins particulares ou de extorsão, diferente dos hackers ou do hacktivismo, que, em essência, pretendem mais do que “explorar as fraquezas” dos sistemas operacionais em prol de obter algum tipo de vantagem pontual.

Cyber rights: https://bit.ly/2qgPVlF

Todo hacktivista é um ciberativista, mas nem todo o ciberativista é um hacktivista

No caso deste texto, achei pertinente apontar que hacktivismo e ciberativismo não são a mesma coisa. Eu sei que esta afirmação pode parecer um pouco óbvia por se tratar de palavras diferentes entre si. Contudo, toda evidenciação de conceito é importante quando queremos prosseguir com uma investigação científica e crítica sobre qualquer coisa. Um forte abraço à epistemologia que nos ensinou essa valiosa lição!

O hacktivismo usa, necessariamente, da manipulação de códigos computacionais para propagar uma ideia política – em geral baseada na tríade liberdade de expressão-direitos humanos-liberdade de informação que iremos tratar melhor mais adiante. O ciberativismo é uma forma mais ampla de lutar por causas políticas, sociais e culturais por meio do ambiente online e suas ferramentas: mídias, redes sociais, abaixo-assinados, campanhas publicitárias, manifestações artísticas etc. Logo, todo hacktivista é um ciberativista – porque, no fim das contas, está utilizando o universo virtual e seus instrumentos para emitir e transmitir uma ação política – mas nem todo ciberativista é um hacktivista, pois nem todo protesto cibernético é executado por intermédio da programação computacional.

Além dessa diferenciação, também acho importante expor brevemente outras categorias que, embora muito semelhantes em seus termos e ferramental técnico, divergem bastante entre si na prática. São elas: o sequestro de dados – ação de interesse privado para obter vantagem a partir do acesso a informações particulares de outrem com a intenção de negociar a não exposição dos dados ou a não utilização do código exclusivo mediante o pagamento de determinado valor econômico ou pelo exercício de qualquer outro tipo de chantagem não financeira (ou por pura diversão, como os famosos trolls) – e o ciberterrorismo – a intimidação e promoção da violência para ganhos políticos ou pessoais específicos, utilizando-se de vírus e/ou outros programas que causam malefícios à rede ou à máquina atacadas, tendo como principal objetivo criar alarde, disseminar o pânico ou a violência física gratuita. Pode ser definido também como o uso intencional de programas de computador ou de redes de acesso para alterar ou destruir dados de pessoas e sistemas governamentais, causando o caos e amedrontando indivíduos ou países inteiros, receosos do próximo ataque.

É lógico que na vida real a fronteira entre as categorias se borram, e nada parece obedecer certinho às definições que produzimos. Mas não é porque as classificações que fazemos para analisar os fenômenos não comportam exatamente todas as possíveis variações dos mesmos, que devemos abrir mão da imprescindível função de categorizar as coisas para organizar, interpretar e compreender interações. Para responder a esses anseios, um dos pais da Sociologia, o alemão Max Weber, propôs uma metodologia complexa, mas que tentarei resumir já que estou fazendo uso dela: Weber nos apresentou a possibilidade de trabalharmos com “tipos ideais”, ou seja, modelos ficcionais historicamente informados, com o intuito de formar generalizações úteis e cautelosas. Entretanto, por se tratar de idealizações, não podem ser encontradas, no nosso dia-a-dia, exatamente como estão determinadas.

“O tipo ideal refere-se a uma construção mental da realidade, onde o pesquisador seleciona um certo número de características do objeto em estudo, a fim de, construir um “todo tangível”, ou seja, um TIPO. […] O objetivo de Weber, ao utilizar o recurso “tipo ideal”, não é de esgotar todas possibilidades das interpretações da realidade empírica, apenas criar um instrumento teórico analítico. Dar “corpo” ao objeto de estudo.” (https://cafecomsociologia.com/tipo-ideal-de-max-weber/)

E por que eu insisto nessas diferenciações e na importância de se compreender os métodos da análise social? Porque o hacktivismo é recoberto de polêmicas, desinformação e estereótipos. E grande parte dessas interpretações mal intencionadas se nutrem de uma confusão artificialmente produzida entre as categorias que expus mais acima. Não estou saindo, a priori, em defesa do tipo de manifestação política que pretendo analisar nem dizendo que você, leitora ou leitor, precisa concordar com as práticas X ou Y descritas ao longo do texto. Estou reportando o trabalho crítico da cientista social que vos fala: apresentar e definir ideias que, em última instância, são construídas independente da vontade de quem as lê, possuindo lógica e coerência internas que não podem ser simplesmente ignoradas por interesses superiores ou julgamentos morais. E, de novo, é isso que a gente faz de melhor: desnaturalizar categorias promovendo o exercício cotidiano de por em suspensão todas aquelas palavras e relações que nos pareciam tão óbvias, revelando o sistema de valores tensos e arbitrários por trás dos aparentes consensos.

Bom, mas voltando ao hacktivismo e seus hacktivistas (sério, eu não vou conseguir me acostumar com esses termos até o final do texto… rs)

Hacktivism: https://bit.ly/2EfgDzM

Segundo Alexandra Samuel, em sua tese de doutorado defendida na Universidade de Harvard e intitulada Hacktivism and the Future of Political Participation, o hacktivismo é o resultado do “casamento entre o ativismo político e o hacking de computador. Isso define o hacktivismo como um uso não violento de ferramentas digitais ambiguamente legais e ilegais em prol de fins políticos. Essas ferramentas incluem invasão de websites, redirecionamentos, ataques de negação de serviço, roubo de informação, paródias de webites, ocupações virtuais [2], sabotagem virtual e desenvolvimento de software”. Há espaço também para as trollagens, isto é, uma forma “humorada” de pregar peças não violentas mas bastante incômodas aos alvos, como por exemplo, pedir em grande quantidade alguma coisa (geralmente pizza, e não me pergunte o porquê) para o endereço residencial da pessoa ou invadindo os sites e inundando-os (flooding) com textos ou imagens grotescas, pornográficas etc.

Parte-se da crença de que essas interferências promovidas em meio virtual têm efeitos similares aos do ativismo ou mobilizações civis “comuns”, ou seja, aquelas que ocorrem no mundo off-line. A máxima poucas pessoas podem escrever um código, mas o código afeta muitas pessoas norteia as atividades hacktivistas e consagra a façanha de manipular as redes informacionais de um simples ato isolado à uma ação coletiva – isto é, uma busca organizada por objetivos comuns, mediados por interesses considerados justos e benéficos à maioria da população. Em outras palavras, a ideia de intervir online a favor de causas políticas aproxima o hacktivismo das mesmas dinâmicas desempenhadas pelos movimentos sociais em suas definições mais clássicas, tornando-o, junto às outras práticas do ciberativismo, uma expressão contemporânea ou “novíssima” [3] de mobilização social. E aqui vale uma consideração um pouco mais teórica…

Movimento social: https://bit.ly/2sudmYD

Umas das pioneiras do campo de pesquisa sobre movimentos sociais no Brasil, a cientista social Maria da Glória Gohn faz um belo resumo, neste texto, do que se entende por movimentos sociais: são “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas”. Ademais, tem como características possuir identidade própria, ter uma figura opositora e articular-se ou fundamentar-se em um projeto de vida e de sociedade. Como principal função, os movimentos sociais “realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como resistência à exclusão e lutam pela inclusão social.”

Gohn ainda afirma que historicamente os movimentos sociais

“têm contribuído para organizar e conscientizar a sociedade; apresentam conjuntos de demandas via práticas de pressão/mobilização; têm certa continuidade e permanência. Não são só reativos, movidos apenas pelas necessidades (fome ou qualquer forma de opressão); podem surgir e desenvolver-se também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência. Na atualidade, apresentam um ideário civilizatório que coloca como horizonte a construção de uma sociedade democrática.”

Não alheia ao desenvolvimento tecnológico mais recente, a autora também reconhece que “[n]a atualidade, os principais movimentos sociais atuam por meio de redes sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais ou transnacionais, e utilizam-se muito dos novos meios de comunicação e informação, como a internet”, podendo incluir, portanto, as atividades do ciberativismo tanto como método contemporâneo de mobilização quanto como pertencente às mesmas estruturas que informam os movimentos sociais como os conhecemos há bastante tempo.

Então, quais seriam as peculiaridades do ativismo hacker?

Hacktivist with a noble cause: https://bit.ly/2GLR66D

Enquanto movimento coletivo, o hacktivismo possui uma ética própria. As ações, quando noticiadas pela mídia, podem parecer aleatórias ou “específicas” demais (como no caso do Panama Papers, considerado o maior caso de vazamento de dados da história, no qual um conglomerado financeiro internacional – a firma panamenha Mossack Fonseca – alega ter sofrido um ciberataque em seu servidor de e-mail e como resultado da invasão, os hackers tiveram acesso a mais de 11 milhões de documentos de colaboradores da empresa). Contudo, em todos os comunicados lançados ao público, em vídeo ou texto, os grupos responsáveis por determinadas ações hacktivistas justificam e contextualizam o porquê da escolha do “alvo” e quais os motivos que levaram a exposição dos dados ou a invasão e derrubada do servidor.

E esses motivos estão, quase sempre, ancorados na tríade liberdade de expressão-direitos humanos-liberdade de informação. Mas o que isso quer dizer?

Em sua origem, lá nas décadas de 1960/70, o hacktivismo dizia respeito a capacidade de alguns grupos especializados de programar softwares com os quais as pessoas do mundo inteiro poderiam conversar de forma segura, mesmo se estivessem sob suspeita ou monitoramento de seus respectivos governos, na ideia de que todos deveriam poder se comunicar e receber suas mensagens sem censura. Este princípio era impulsionado, de maneira fundamental, quando os hacktivistas se deparavam com os regimes de governo totalitários e o controle que exerciam sobre a população que deles não poderiam discordar. Daí a parte liberdade de expressão do tripé. Esta convicção impera até hoje, e a função de elaborar e usar softwares livres capazes de garantir a comunicação entre as pessoas e o resto do mundo ainda é característica fundante do hacktivismo.

A questão do anonimato também é um ponto central para todo o desenvolvimento deste fenômeno e não à toa o grupo de hacktivistas mais influente e conhecido do mundo se autodenomina Anonymous. Resumidamente, a ideia da importância de manter-se anônimo diz não apenas sobre a segurança dos sujeitos particulares que se envolvem com esse tipo de atividade – a maioria das vezes ilegais, o que acarreta processos, julgamentos e prisões quando os membros são identificados e localizados. Diz também sobre uma disputa política e ideológica importante no mundo moderno e tecnológico de hoje em dia. Os hacktivistas entendem que a sociedade é controlada por poucos indivíduos – organizados em corporações, ricos, poderosos e igualmente anônimos – que, a despeito de qualquer compromisso com os direitos humanos mais básicos e a favor de seus próprios interesses econômicos e políticos, monitoram online e invadem a privacidade da população em geral, que, empobrecida, dependente ou alienada, não possui meios ou conhecimento para se defender, ou ao menos resistir. O hacktivismo seria, neste sentido, um front de batalha erguido na internet para combater esses indivíduos empenhados em explorar virtualmente as pessoas ao mesmo tempo que, ao se formarem enquanto uma legião, sem rosto, descentralizada, ramificada e espalhada por todo o globo, os hacktivistas estariam, em teoria, dispostos a inverter o sentido do controle, exercendo eles – e portanto, qualquer um – o poder sobre os governos e não o contrário.

A relação governo X povo, como você já deve ter percebido, está no cerne do movimento. Quando o caso do Panama Papers estourou, Bem Wizner, membro da American Civil Liberties Union e advogado de Edward Snowden (pivô de outra famosa exposição de informações sigilosas, neste caso do governo e exército norte-americanos), citando Aristóteles, disse:

“Quando um governo sabe tudo sobre os cidadãos e os cidadãos sabem pouco sobre o governo, isso é tirania. Quando os cidadãos sabem tudo sobre o governo, e o governo sabe pouco sobre os cidadãos, isso é democracia”. (https://www.showmetech.com.br/o-caso-panama-papers-e-o-papel-dos-hackers-na-democracia/)

Logo, como nos indica Maria da Glória Gohn, identifica-se no interior das dinâmicas hacktivistas, um ideal de construção de uma sociedade mais justa, transparente e democrática. Em última instância, para os hacktivistas (consciente ou inconscientemente), invadir sistemas e sites que estão a serviço da exploração do povo e/ou revelar informações ou transações que são intencionalmente encobertas para que continuem a prejudicar e doutrinar a maior parte da população – seja direta ou indiretamente – é um dever a ser cumprido, coletivamente, em prol ao respeito dos direitos humanos e da menor exclusão social. O caso Wikileaks, liderado pelo australiano Julian Assange, também teve esse caráter de expor informações sigilosas que atentavam contra a maioria das pessoas. A verdade quer ser livre, e nós queremos libertá-la foi a frase de efeito que classificou o evento Wikileak entre os hacktivistas envolvidos.

Além desta questão mais política e econômica, há um viés moral importante na performance do ativismo hacker. De forma geral, os propósitos “combater o mal”, “fazer a diferença” e “melhorar o mundo” parecem se atualizar continuamente como as metas deste movimento. O objetivo seria utilizar das tecnologias de hacking para transformação social, discernindo quais valores são certos e errados em uma sociedade moderna e liberal, e quais são as práticas e ideias não toleradas – são comuns os casos de perseguição e exposição de sujeitos e sites neonazistas, supremacistas raciais, representantes de políticos corruptos, mas também de condutas sexuais dissidentes ou estilos de vida moralmente sensíveis. E ao contrário das outras ações virtuais como o sequestro de dados ou de ciberterrorismo, os protestos do hacktivismo, de forma anônima, não buscam compensação financeira, vantagens pessoais ou favorecimentos institucionais. Eles criaram uma certa identidade positivada (negam, na maioria das vezes, o uso da violência), na qual o bem comum e coletivo seriam superiores às gratificações individuais. Eles teriam o “dever” de “promover” uma sociedade “melhor”, seja lá que diabos isso signifique para cada um dos grupos hacktivistas e dos alvos escolhidos.

O último ponto do tripé, a liberdade de informação, se caracterizaria, resumidamente, no esforço em manter a internet livre. Ou seja, o hacktivismo opera sempre na intenção de combater qualquer tentativa de censura ou controle das informações que circulam na internet, seja por instituições públicas ou privadas. [4] A disputa – ou melhor, a guerra invisível – entre o Anonymous e a Igreja da Cientologia é um ótimo exemplo desta cruzada hacktivista anti qualquer tipo de restrição externa de circulação de conteúdo que eles julguem livre, e moldou o modo como o ativismo hacker seria encarado dali em diante (coloca no Google, vale a pena. Tem a ver com um vídeo do Tom Cruise… sério… muito louco! rs). O episódio, ao mesmo tempo que comprovou a força da organização virtual, visibilizou o movimento e endossou uma campanha midiática contra o ativismo hacker.

Vale ressaltar, novamente, que essas categorias, esses valores e esses propósitos não são “coisas” estáveis na realidade e quase sempre se modificam com o tempo e com determinadas circunstâncias. Um caráter mais ou menos anarquista, mais ou menos liberal – no sentido econômico do termo – ou mais ou menos implicado politicamente volta e meia se revessam entre os grupos, as ações e os alvos do hacktivismo e do ciberativismo como um todo. A discussão entre legalidade e ilegalidade, sobre a legitimidade dos protestos online (via DDoS, os chamados virtual sit ins) frente às acusações da justiça de violação da propriedade privada e, em última instância, o processo de transformação de certas ordens sociais para fins mais democráticos ou como mero uso da internet para promover pegadinhas, os hacktivistas não são “só mais uma peça” desse complexo tabuleiro de disputas de interesse e de futuro. Eles se constituem como um modo atualizado, contemporâneo e tecnológico de manifestação política, com forte viés ideológico, organizados e não devendo ser subestimados.

A causa e o ilícito: qual a medida da revolução?

Caveira digital: https://bit.ly/2H4sg2a

O hacktivismo se mostra disposto a burlar o sistema para defender suas convicções? Sim. Como efeito colateral, isso pode ter consequências ruins para alguns usuários finais? Também. As coisas que dão erradas ou os trolladores que se formam dentro dos grupos e agem de forma independentes serão usados contra o próprio hacktivismo? Com certeza. O que você interpreta de tudo isso? Eu sinceramente não sei.

Protesto: https://bit.ly/2IzeGku

Este textão tentou desmistificar alguns estereótipos produzidos em torno da figura hacker e das possibilidades de manifestação política em ambiente virtual. Tentou demonstrar que existe uma intencionalidade por trás da performance online dos ativistas, que por sua vez, obedece a um conjunto de valores que arquitetam uma ética própria e coerente, embora por vezes contraditória. Almeja-se rebelar-se, sem dúvidas. Mas os limites de qualquer revolução estão sempre postos na realidade, seja pela falta de recursos seja por esbarrar numa opinião pública muitas vezes bastante refratária às mudanças bruscas de paradigmas.

Escolher entre as palavras ataque ou protesto; invasor ou hacktivista; vazamento ou divulgação; infração da lei ou interesse público entre outro binômios revela qual interpretação estamos dispostos a sustentar, ou não. Podemos nos perguntar: por que a imagem em torno deste movimento pode ser tão negativa? Será pelo fato de que o hacktivismo parece aleatório, elegendo alvos de forma não muito transparentes, gerando uma instabilidade generalizada, pois nunca sabemos “quem será o próximo alvo”, além de não se responsabilizarem pelos efeitos ruins geradas aos alvos expostos? Será porque operam no limite da legalidade e só conseguem atingir seus objetivos burlando os códigos legais e éticos da sociedade moderna como a invasão de privacidade e a divulgação de informações secretas ou privilegiadas? Ou será porque estão mexendo com indivíduos e corporações muito poderosos que, inseguros, manipulam a opinião pública contra aqueles que mais os ameaçam?

De maneira bem objetiva, tudo dependerá da forma como você, leitora ou leitor, encara as estruturas que regem política, econômica e moralmente o mundo em que vivemos hoje. Assim, abro mão, intencionalmente, da responsabilidade de responder essas perguntas. Não me entendam mal. Esse exercício também faz parte da reflexão sociológica que propus desde o início. A gente não trabalha com verdades absolutas e confiamos no senso crítico dos que se dispõem a entrar nesse tipo de análise. Então, para finalizar, parafraseando Menor do Chapa e dando uma pista do que eu particularmente compreendo por hacktivismo: e aí irmão, humildade, disciplina e vida loca.


Dicas legais se você quiser continuar pensando sobre os hacktivistas

1- A série Mr. Robot (não tem no Netflix, mas é fácil de encontrar online)

2- O filme We Are Legion: The Story of the Hacktivists (é um documentário sobre a formação do grupo Anonymous e tá disponível com legenda no Youtube)

3- O artigo Ciberativismo e movimentos sociais: mapeando discussões da socióloga Lívia Moreira de Alcântara (disponível online)

Notas de rodapé:

[1] Essa definição e outras oito variações podem ser acessadas na versão online do Jargon File:  http://catb.org/jargon/html/H/hacker.html

[2] Em inglês virtuals sit-ins é uma prática conhecida como DDoS (distributed denial-of-service attack) que consiste em promover o acesso simultâneo e repetitivo de um número grande de usuários – reais ou simulados – a um site alvo com o intuito de produzir um congestionamento no servidor e ocasionando uma navegação lenta do site até seu completo colapso, o que impossibilitaria o acesso por qualquer outra pessoa. O termo é inspirado na forma de manifestação pacífica do “protesto sentado”, ou seja, ocupar o local em disputa sentando-se no chão e inviabilizando a circulação de outras pessoas ali.

[3] O adjetivo faz referência ao artigo GOHN, Maria da Glória. Manifestações de protesto nas ruas no Brasil a partir de Junho de 2013: novíssimos sujeitos em cena. Revista Diálogo Educacional, v. 16, n. 47, 2016.

[4] Há relatos de invasão e suspensão de fóruns e sites, por parte dos hacktivistas, que promoviam discussões, como disse antes, “moralmente sensíveis”, ou seja, assuntos os quais caminham nas fronteiras do que é produzido como “certo” ou “errado” na sociedade atual (p. ex. fóruns sobre desejos parafílicos com debates sobre sexo com dejetos humanos ou sobre desejos pedofílicos, sem qualquer postagem contendo imagens de exploração infantil ou estimulando a prática em si). Isso, de fato, é um ponto contraditório com a tal liberdade de informação tão sagrada para o hacktivismo. Em certo sentido, poderia caracterizar uma censura dos próprios hacktivistas. Mas, como expliquei, eles elaboram e expõem um corte moral do que julgam ser permitido ou não em uma sociedade moderna e operam de acordo com esses valores. Aquilo que fere os preceitos estabelecidos estará, sim, passível de punição e, portanto, poderá ser retirado da internet. Há coerência interna, percebe? O que o hacktivismo não tolera é que a seleção do que pode ou não circular seja feita por interesses outros que não os da “construção de uma sociedade melhor”.

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Raquel Oscar. Antropóloga, problematizadora nerd e acredita que a tecnologia vai salvar a humanidade – mas não do jeito que você imagina