De onde viemos? Como a vida evoluiu? Como é possível que tenhamos a complexidade da vida atual?

Essas questões que se relacionam com o início das coisas, sempre foram para mim (e com certeza para muitos dos leitores), questionamentos muito interessantes. Muitos podem afirmar que tais questões jamais poderão ser respondidas, ou porque estão em um domínio divino ou porque duvidam da nossa capacidade de “previsão” de um passado tão remoto. Analisar os estratos geológicos e inferir a idade das rochas para traçar linhagens evolutivas concomitantes a idade do nosso planeta, parece uma atividade simples quando comparada a ideia de inferir hipóteses sobre a origem da vida, para a qual nos restam quase ou nenhuma evidência histórica. Há muito os primeiros organismos vivos foram extintos e é bem pouco provável que encontremos seus registros fósseis que sofreram com um planeta muito mais agressivo de bilhões de anos atrás.

Enquanto escrevia e por dica de algumas pessoas que leram o texto, decidi dividi-lo em duas partes, por uma questão de tamanho e para que as ideias possam ser organizadas de maneira melhor. Além disso, creio que a segunda parte ficará com  função de finalizar o assunto, e um segundo texto me dará mais liberdade para expandir os temas abordados aqui. Então, neste primeiro texto, vamos fazer uma análise nas moléculas básicas para a vida, passando pelo DNA, RNA e uma olhada um pouco mais próximas de proteínas e ribozimas. Nessa nossa pequena série no meu primeiro texto aqui no portal Deviante, quero tentar trazer a você leitor uma pequena viagem investigativa sobre a origem da vida. Para isso, o nosso foco se dará na genética, mais precisamente uma olhada mais profunda no mundo dos ácidos nucleicos DNA e RNA, moléculas tão essenciais para a vida como a conhecemos. Muitos vídeos e textos na internet discutem o assunto de forma excelente, e para isso, deixei links no final do texto para que quiser conferir mais. No entanto, o meu objetivo aqui é trazer isso um pouco mais perto da bioquímica, demonstrando a semelhança de algumas moléculas essenciais para todas as formas de vida no planeta, e para isso, precisamos revisar pontos essenciais na biologia molecular dos ácidos nucleicos. Então vamos lá!

O Ovo ou a Galinha?

O DNA é o código genético universal das formas de vida do nosso planeta, precisa de proteínas para ser copiado. Na transcrição do DNA, proteínas como a DNA polimerase entram em ação, e para que o código genético possa gerar a informação necessária para a síntese de proteínas, outras proteínas precisam entrar nesse processo. Dessa maneira, concluí-se que o DNA precisa de proteínas para funcionar, e as proteínas precisam do DNA para existir. Isso leva fatalmente a um paradoxo de quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? Teriam as proteínas e o DNA surgido ao mesmo tempo?

Para responder a essa pergunta, podemos nos atentar ao RNA, e é isso que pretendo fazer nessa série.  Quero fazer antes um pedido especial a você, leitor: Ponha sua capa de investigação, pegue sua lupa e limpe sua lente, pense nos fatos e hipóteses que vou expor aqui e, principalmente, tente identificar o padrão, isso será essencial para que você possa absorver o que tenho a dizer aqui ;) . Feita a digressão, quero também deixar claro que tudo o que for dito aqui se baseia em ideias evolutivas, em que os ancestrais que têm capacidade de se reproduzirem e transferirem informações às próximas gerações se correlacionam em uma intricada rede de conexões regidas pela seleção natural. Comentários que questionem essa ideia são bem vindos, mas como estamos na internet, peço que tenhamos educação uns com os outros e vamos tentar construir discussões interessantes, tá legal? Dito isso, vamos a nossa investigação, começando por uma explicação sobre os ácidos nucleicos.

Os Ácidos Nucleicos

O DNA é a molécula que guarda as informações em sequências específicas, cada sequência gera um resultado traduzido em moléculas chamadas aminoácidos. Uma sequência de aminoácidos suficientemente longa é chamada de proteína. As proteínas, por sua vez, fazem praticamente tudo em todos os organismos vivos em nosso planeta: Elas são as responsáveis por acelerar reações químicas (enzimas), estruturar as nossas unhas (queratina), a cor da nossa pele (melanina), quebrar outras proteínas no estômago (tripsina), contrair os nossos músculos (actina e miosina), entre milhares de outras funções, só para ficar em exemplos humanos. Para se ter uma ideia, o Homo Sapiens, ou seja, você e eu, caro leitor (tirando as inteligências artificiais que estão lendo esse texto para destruir a todos nós), possuímos em cada uma de nossas células cerca de 18 mil genes, que, grosso modo, traduzem cada um deles uma proteína diferente. Um gene é uma sequência de nucleotídeos no nosso DNA que codifica uma proteína específica, mais a frente discutiremos como as proteínas são formadas a partir do DNA. Pense em proteínas como máquinas muito pequenas, da ordem de alguns nanômetros de tamanho (um nanômetro é igual a 0,0000001 centímetros!), que convertem energia em movimento e fazem verdadeiros espetáculos moleculares. Eu sou um entusiasta muito grande do mundo das proteínas, então vou parar por aqui antes que eu me empolgue muito. (Digam aí se vocês querem um texto apenas sobre proteínas a propósito. Por favor, digam que sim!). Vamos dar um breve resumo do que ocorre: O DNA possui a informação essa informação é copiada numa molécula chamada RNAm (RNA mensageiro), o RNAm vai para uma estrutura chamada ribossomo (que é uma maquininha, feita de um tipo especial de RNA chamado RNA ribossômico, ou RNAr), e é traduzida em proteínas. A imagem abaixo resume o processo. O RNA e o DNA são os ácidos nucleicos.

https://br.pinterest.com/pin/349029039857788868/

As proteínas são então processadas e vão lá executar suas lindas funções como maquininhas fazem. Para continuar nossa investigação sobre o paradoxo já exposto neste texto, vamos tratar da química dos ácidos nucleicos. Se concentre e tente entender os conceitos, com as ferramentas certas, vamos tentar elucidar um pouco o modo como a vida pode ter surgido no nosso planeta.

O DNA     

Como já abordei anteriormente, temos duas moléculas fundamentais para a transferência e armazenamento de informações genéticas: O DNA e o RNA. O DNA, como já é bem conhecido, possui, no geral, uma estrutura de dupla fita que se enrola como uma escada em volta de um eixo. Os corrimãos são compostos por um grupo fosfato, um açúcar (desoxirribose), e uma base nitrogenada. No DNA, temos quatro bases nitrogenadas básicas: Adenina (A), Timina (T), Guanina (G) e Citosina (C). Em cada lado do corrimão, onde temos uma Guanina, sempre teremos do outro lado uma Citosina ligada, e onde houver uma Timina, haverá uma Adenina oposta a ela.

Lembre-se: cada traço no desenho representa uma ligação química. Cada vértice (cotovelo) é um átomo de carbono. O carbono faz sempre 4 ligações, então se você achar que contou errado, é porque tem hidrogênios que fazem apenas uma ligação naquela posição e são ocultados por motivos de simplicidade. Esse padrão vai se repetir nas imagens subsequentes, então se tiver dúvida, volte aqui nesse resumo. A ideia em apresentar essas imagens é facilitar a compreensão do texto, foque na estrutura, se necessário, volte nas imagens para ver as semelhanças e diferenças.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:DNA_chemical_structure_pt.svg

Quando a célula necessita de uma proteína para, por exemplo, auxiliar na produção de energia, ela envia um sinal para o núcleo da célula (que contém o DNA) para que a produção se inicie. Por meio de mecanismos moleculares complexos, o trecho do DNA que codifica aquela proteína é aberto (lembre-se que são dois corrimões), e a informação para a produção de uma proteína é exposta. Mas para que isso ocorra, esse código precisa ser copiado em outra molécula, um RNA especial, chamado de RNA mensageiro (RNAm). O RNAm pareia bases nitrogenadas complementares a cadeia de DNA, colocando uma Guanina onde houver uma Citosina, e assim por diante (há uma exceção a essas bases nitrogenadas que discutiremos na parte de RNA). Posteriormente, o RNAm com o código para a proteína de interesse é levado para o citoplasma, região onde pode-se encontrar os ribossomos. Os ribossomos são estruturas que são capazes de traduzir as informações nas sequências do RNAm em proteínas. A partir de cada trinca (sequencia de 3 bases) do RNAm, o ribossomo adiciona um aminoácido a proteína, e é basicamente assim a via que traduz o conteúdo do DNA.

O RNA

O RNA, por sua vez, possui uma estrutura muito parecida com a do DNA (olha a evolução aí). A molécula de RNA forma apenas uma fita simples, por algumas razões bioquímicas que, confesso, não sou totalmente apto para explicar. Um ponto interessante é a troca da base nitrogenada Timina (T), por uma Uracila (U), que diferem apenas por um grupo metil CH3 existente na Timina.

(Repare na diferença entre a Timina e a Uracila, são praticamente idênticas exceto por um grupo CH­3 na Timina)

A diferença entre um açúcar ribose e um açúcar desoxirribose está em um dos carbonos do anel, que, ao invés de um grupo hidroxila (OH no ribossomo), possui um H no DNA. Esse pequeno detalhe diferencia essas estruturas a ponto de o DNA poder  formar uma dupla hélice, se dobrar menos, e possuir intrinsecamente maior coesão e estrutura para transmitir a informação genética.

http://www.universiaenem.com.br/sistema/faces/pagina/publica/conteudo/texto-html.xhtml?redirect=87097948214604078710650079881

O RNA é uma molécula que, apesar de parecer pouco diferente do DNA e até mais simples, possui algumas características interessantes. Ela tem muito mais capacidade de se dobrar sobre si mesma, produzir voltas e se aglomerar de maneiras variadas. Além disso, é capaz de se auto replicar e também de catalisar reações, e por isso é a grande candidata abordada nesse texto do Mundo de RNA como a molécula que deu o start a vida na terra. O RNA tem uma estrutura básica, mas pode adquirir formas diversas muitas vezes não previsíveis. Nas células modernas, ela se apresenta de diversas formas: RNA mensageiro, RNA transportador, RNA ribossômico, entre vários outros tipos, que se encarregam de funções diferentes na célula.

Proteínas e Ribozimas

Retomando os conceitos já abordados anteriormente sobre proteínas, alguns pontos interessantes se fazem necessários aqui. As enzimas são tipos de proteínas que aceleram a degradação e a modificação de substâncias orgânicas e inorgânicas nas células. Elas são responsáveis por fornecer à célula moléculas que de outra forma não se formariam em milênios, e sua ação consiste em fornecer as moléculas formas mais simples de se modificarem e formarem produtos. Uma boa analogia a uma enzima é a de um parafuso que precisa ser parafusado em uma peça de um eletrônico: Probabilisticamente, há sempre uma chance de que, se o parafuso for arremessado na peça, ele irá acabar entrando de uma maneira perfeita e se parafusando nela. No entanto, contando com um manipulador e uma chave de fenda adequada, essa probabilidade aumenta muito. O papel das enzimas é justamente fornecer as condições necessárias para que as reações espontâneas ocorram em um tempo adequado para a vida da célula. As enzimas, por serem proteínas, são em sua esmagadora maioria constituídas de aminoácidos, podendo possuir cofatores e coenzimas associadas, como íons e outras moléculas. Mas para que eu estou batendo tanto nessa tecla das proteínas e, especificamente, nas enzimas? Bem, nas últimas décadas os cientistas têm isolado e identificado novas formas de enzimas que são denominadas ribozimas. O termo ribozima é derivado dos nomes “enzima” e “ribonucleico”, pois, como o leitor já deve ter percebido, as ribozimas são feitas de RNA. A discussão em torno deste texto aborda especificamente o tema da origem da vida, e o Mundo de RNA é justamente a hipótese que num passado remoto, moléculas de RNA coordenavam a esmagadora maioria das reações, desde catálises à própria replicação do material genético, e é por isso que passamos esse primeiro texto discutindo as bases químicas das moléculas que carregam a informação genética, pois elas são a chave para desvendar esses mistérios. De qualquer forma, espero que até aqui os conceitos que abordamos estejam bem compreendidos, e que no próximo texto dessa série possamos nos concentrar mais na ideia do Mundo de RNA com uma análise mais psicológica das moléculas. O RNA e as ribozimas voltam, para um aprofundamento melhor, e novos atores moleculares entrarão em cena. Bem, sem spoilers, desejo a todos um ótimo dia/tarde/noite e que vocês tenham gostado. Comentem, compartilhem, critiquem e a sessão de comentários é de vocês. Até a próxima!

Links para aprofundamento e referências

Enzymes That Are Not Proteins: The Discovery of Ribozymes

Do DNA até a Síntese de Proteínas

Walter NG, Engelke DR. Ribozymes: catalytic RNAs that cut things, make things, and do odd and useful jobs. Biologist. 2002;49:199–203.

LEHNINGER, A.L.; NELSON, D.L.; COX, M.M. Princípios de Bioquímica. 6. ed. São Paulo: Sarvier, 2014. 1298p.


André Luiz Estudante de graduação em ciências biomédicas na USP. Apenas um jovem mancebo a procura do seu cantinho no universo, lutando entre a incansável curiosidade (e paradoxalmente ao incansável), procrastinação na frente do vídeo game, Netflix e minha cama. Adoro papos sobre qualquer coisa, um amante das Crônicas de Gelo e Fogo e sempre pensando em pizza.